quarta-feira, 12 de novembro de 2008

OPERAÇÃO "NOITE (IN)FELIZ"


Três fiscais, um da Receita Federal, um da Secretaria da Fazenda do Estado e um da EPTC, que tiveram que trabalhar em pleno dia 25 de dezembro, resolveram fazer um happy hour, ao fim do expediente. Ao deixar o bar, quando já estavam se despedindo, eis que, bem à sua frente aterrissa um trenó puxado por renas voadoras, guiado por ninguém menos que ele: Papai Noel!

–Ho, ho, ho! Feliz natal! Venho trazendo estes presentes lá do Pólo Norte sem fazer nenhuma parada... preciso ir no banheiro...

O fiscal da Receita Federal não gostou nada do que ouviu. Franziu o cenho e já saiu interpelando o viajante:

–O senhor não fez nenhuma parada? Nem na alfândega? Entrou com esses animais no país, sem autorização do IBAMA? Mostre a quarta via da guia de importação de todos estes presentes agora mesmo!

Gaguejando, o Papai Noel começa a se explicar:

–Bem, nunca haviam me pedido nem autorização para as renas, nem guia de importação, mas, veja, estes presentes não são pra mim, são para as milhões de crianças do Brasil, ho, ho, ho! Asseverou, tentando sensibilizar o fiscal.

–Se esses presentes não são para uso pessoal do senhor, se o senhor pretende distribuí-los aqui no Brasil, então agora o senhor se “lascou” mesmo. Vou ter que apreender as renas e os presentes. Estes que estão apenas em trânsito para a Argentina e Uruguai eu posso deixar passar. Pode ficar com essa rena de nariz vermelho, deve estar doente.

–Mas, senhor, eu sou o Papai Noel!

–A União não acredita em Papai Noel! Além disso, não me interessa quem o senhor é. Eu não abro exceções. Sou um aplicador da lei, não negocio e não faço vista grossa. E tenho dito.

E foi-se o fiscal da RF levando os presentes a tiracolo, montado numa das renas. Em seguida o da fiscal da SEFAZ dirigiu-se a Noel:

–Pior é que eu vou ter que apreender o resto das mercadorias, pois observo que você circula sem Nota Fiscal. Me empreste algum documento pra eu lavrar o Auto de Infração... Deixe me ver... Opa! Aqui está dizendo que o seu nome é Nicolau de Bari!

–Sim, esse é meu nome verdadeiro. Papai Noel é só minha alcunha.

–Sim, alcunha é coisa típica dos infratores, mesmo. Ainda bem que nós da SEFAZ nunca acreditamos em Papai Noel. Tchau, tchau, Nicolau! – E saiu com o resto da mercadoria.

O pobre Papai Noel ficou desolado junto ao trenó. Percebendo que o fiscal da EPTC o observava, levantou seus olhos que encontraram os do fiscal:

–E o senhor? Vai me autuar pelo quê?

–Veículo de propulsão animal sem licença da Prefeitura, art. 24, XVII, do Código de Trânsito.

–Não dá pra relevar, tendo em vista tudo o que tive que passar hoje, bem na sua frente?

–Ok. Vou aliviar tua barra, mas tu vais ter que recolher aquele lixo ali da esquina.

–Bem, pelo menos vocês da EPTC acreditam em Papai Noel.

–Não, não acreditamos. Apenas toleramos os carroceiros.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

DR. BROTHER


Estavam todos a postos quando o advogado da autora dera início aos debates orais. E poucas vezes se viu uma exposição com tamanha eloqüência. Impossível transcrever a íntegra do discurso do causídico, mas a partir do trecho final se pode ter uma vaga idéia da beleza da oratória empregada por Dr. Platão Socrático àquela tarde, em plena Vara de Família:

–O agir heteropoiético ostentado pelo varão, ontologicamente considerado, a obumbrar a axiologia deontológica das núpcias, ignominiando e escarnecendo da varoa, o fez trilhar o descaminho que inexoravelmente o trouxe a deslugares. Casmurro arauto no lar, é indigno da vetusta, baluarte aclamada e conclamada pela comunidade e que nada mais fazia que recender e dimanar doçura e caridade por onde passava, exortando nada além de virtudes aos seus, fracassara, obviamente, em relação ao adúltero, este, sim, culpado do divórcio e com justiça defenestrado. Nada mais, Excelência.

E lágrimas desceram dos olhos do magistrado que, arregalando-os, fitou o advogado do réu, um menino que trajava terno, mas calçava tênis, cabelos tingidos de loiro, acne. Pela aparência não poderia ter mais que vinte anos de idade. Certamente, recém formado. Após engolir em seco e fitar novamente o neófito, o juiz asseverou, já de maneira tendenciosa:

–Vejamos o que tem a dizer o advogado do “adúltero”.

Dr. Brother, por sua vez, tendo presenciado a manifestação do oponente e observado o efeito do seu discurso sobre o nobre julgador, também cuidou para que sua manifestação fosse marcada pela utilização de termos, sob sua ótica, extravagantes. Surfista acostumado a enfrentar ambientes radicalmente hostis, iniciou com confiança sua manifestação:

–Tipo assim, data venia, ta ligado? Tipo, o coroa fez toda a mão pra mina: vivia trampando e, tipo, fazendo as “parada”. Deu um carango e uma baia pra mina. O cara era bala, mas a mina era perva, tipo, muito chave, saca? Curtia umas “parada” sinistra, e ainda ficava tirando o coroa. Tipo, não tava rolando, ta ligado? Daí o cara deu a real pra mina que não curtiu. Daí fez toda a mão, saiu da baia, tipo, na parceria, e pegou uma mina show e a outra ficou de cara, botou o cara no pau e “tamo” aqui, agora. Tipo, era isso... Falou.

O juiz estava vermelho de raiva. Nunca sua sala de audiência havia sido tão insultada por termos tão inadequados. Mas a verdade era que a prova estava em favor de Dr. Brother e a isso somava-se o fato de que, sinceramente, não entendera uma palavra do belo discurso do representante da autora. Assim sendo, a contragosto, sentenciou em audiência em favor do réu, mas para não desmerecer o venerável empenho de Dr. Platão Socrático, fez uma lisonjeira menção à sua notável manifestação, ao que aquele respondeu:

–Pode crer, mano!

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

REPARTIÇÃO EM FESTA


Dr. Cortês Polido nunca saía de sua imensa firma de advocacia, no centro-oeste do país. Se saia, era apenas para reunir-se com clientes multinacionais, palestrar em grandes convenções, ou receber prêmios. Eventualmente, quando a coisa estivesse muito feia mesmo, reunia-se com magistrados. Naquele dia, parecia ser o caso. Um mal entendido em um processo que tramitava em uma comarca do sul faria seu cliente perder milhões. Sem hesitar, perguntou para o seu pessoal se queriam alguma coisa do sul e entrou num avião com três tarefas: tirar um processo em carga, fazer cópia integral de outro e, ao fim do dia, a tal reunião com o juiz.

Chegou cedo. Gel no cabelo. Abotoaduras de ouro. Sapatos lustrosos. No cartório, porta trancada, em que pese o aviso “entre sem bater”. Sem conseguir entrar, resolveu bater. Uma senhora matrona entreabriu a porta, olhou-o de cima abaixo e, aparentando surpresa, indagou:

–Tu não sabes que até as 10h30min o expediente é interno? – Falou e bateu a porta.

Nisso chegaram dois motoboys (notava-se por suas vestes). Um trazia caixas de cachorrinhos quentes e outro, garrafas de refrigerante. Bateram na porta. O advogado tentou alertá-los do horário, mas antes que dissesse qualquer coisa, a porta se abriu e a mesma senhora, com um sorriso no rosto, recebeu a mercadoria, batendo a porta atrás de si. Era aniversário de um servidor e o cartório estava em festa.

Dr. Cortês decidiu ir ao bar e tomar um café. Seguiu seu olfato até ver o balcão cheio de guloseimas, torta de sorvete, muita gente em volta (certamente faziam hora, como ele). Acomodou-se e pediu o cardápio. Fez-se silêncio no recinto. A atendente, franziu o cenho e exclamou:

–Isso aqui não é bar, doutor! É a vara cível! Esta é a festa de despedida do estagiário que está saindo, assim como o senhor! Saia já!

Tudo ficou muito pior quando as varas abriram ao público. Advogados se amontoando para serem atendidos. Os servidores com cara de exauridos defendiam-se: calma “cara” – ali se chamava advogado de “cara” – é difícil dar conta do trabalho, nesta vara!

À hora da reunião, o causídico, já extenuado aguardava e nada do juiz. A assessora veio, então, avisá-lo de que a reunião teria que ser remarcada. O juiz, na condição de autoridade forense, fora parabenizar o servidor que aniversariava e, depois, iria à festa de despedida do estagiário.

Frustrado e ofendido, o grande advogado retornou à sua cidade sem nenhuma das tarefas cumpridas (um processo estava com a informação errada na internet e o prazo era pra outra parte, o outro estava numa pilha muito grande e, só daria pra encontrar no dia seguinte). Ao ser indagado pelo seu pessoal sobre o que achara do foro sulista, deu de ombros e, após um profundo suspiro, fitou o interlocutor e asseverou:

–Igual a todos os outros...

http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?idnoticia=13054


Kombi da Torta de Sorvete em frente ao TJRS
(em local proíbido... para advogados...)

sábado, 26 de julho de 2008

O EXECUTIVO “CABEÇA-DE-OVO”

Com a Cadeira Presidencial vaga, só se sabia de uma coisa: o novo chefe seria um dos diretores já existentes. Entretanto, nenhum deles aceitava que o outro fosse indicado. A Diretora de RH, então, sugeriu que todos passassem por uma dinâmica de grupo, incumbindo a ela o encargo de escolher o novo CEO. Ela, obviamente, abriria mão da posição para dar mais credibilidade ao certame, ao que fora aplaudida pelos demais.

Dr. Bossalino, Diretor Jurídico, foi o primeiro a se candidatar. Não agüentava mais ter que remediar as besteiras que esses diretores executivos faziam no comando da empresa. Mesmo sem a formação para a posição, encarou o desafio, inquestionável líder que era, pelo menos diante dos advogados da empresa.

Iniciando a dinâmica todos os diretores sentaram em roda, no centro da sala de reuniões, e a Diretora de RH passou-lhes as instruções. A missão era muito simples: passar um ovo cru de mão em mão. E, por meia hora, o ovo circulou pela roda. A fim de se destacarem, os diretores tentaram de tudo: pegavam o ovo com uma mão e entregavam com outra, de olhos fechados, abertos, rápido, devagar, e não acabava o suplício.

Foi então que Dr. Bossalino, que não tinha tempo pra brincar de “passa-ovo”, cansado de baboseiras, jogou o ovo que se espatifou no chão. Levantou-se e já ia saindo da sala quando a Diretora de RH exclamou para todos ouvirem:

–Senhores, felicitem nosso CEO! O objetivo era justamente este! Só um verdadeiro líder assume riscos, toma iniciativas e resolve os problemas do grupo! Tocar o ovo no chão exige coragem e perspicácia! Parabéns, Bossalino, você é, por direito, o nosso chairman.

E assim Dr. Bossalino assumiu a cadeira de Presidente no alto da grande torre, sede da empresa. Sua postura era mesmo presidencial. Deixava clara para todos a sua autoridade e não aceitava palpites. Ao contrário, amaldiçoava sua sorte por viver cercado de incompetentes! Tinha que ensinar até os seus contadores a fazer “balanços”.

Certa feita estourou na empresa uma crise sem precedentes junto ao mercado financeiro. Algo relacionado aos balanços que estavam sendo divulgados. Nada que Dr. Bossalino fazia parecia ajudar a resolver. Até o Departamento. Jurídico parecia se voltar contra ele. Ficou um tempo analisando a derrocada de sua carreira. A partir de que momento se tornara um incompetente? De repente se lembrou da dinâmica de grupo e das qualidades que o levaram a posição de CEO. Então, sem hesitar, pulou da janela e se espatifou no chão.

Depois do episódio, a empresa publicamente culpou Bossalino pela crise e, com ele fora do caminho, ganhou credibilidade e recuperou-se. Muitos referiam-se a Bossalino como “O Executivo ‘Cabeça-de-Ovo’”, mas não a Diretora de RH. Dizia ela:

–Se sacrificou pela empresa: um líder, um mártir!

sábado, 14 de junho de 2008

NOTA DO AUTOR

Tendo publicado hoje o meu sétimo conto no blog, sinto a necessidade de fazer algumas considerações.

1ª Como o leitor pode notar, os contos diminuiram muito de tamanho nos últimos tempos. Isso porque nos tornamos colaboradores do Site Espaço Vital, onde os textos são limitados a 2.800 caracteres, ou seja, 1/5 do tamanho médio de nossos contos normais, como o Dr. Jassey e o Gênio da Lâmpada.

Não, não vou parar de fazer contos grandes só porque agora escrevo no Espaço Vital, mas é que minha atenção agora está dividida.

2ª Como tem gente sentindo falta dos contos maiores e mais complexos, prometo que até julho vou fazer pelo menos um dos grandes. Tenho muitos projetos de contos grandes como os que seguem:

-"Doctor Jassey and Mister Windsor", uma paródia do famoso "O Médico e o Monstro" que estou há horas pra fazer e sequer comecei;

-"Don Azurra e os Justiceiros" que é uma crítica à EPTC;

-"A Revolução dos Bichos: Uma revisão", que é o depoimento de um animal que estava na célebre revolução retratada por George Orwell em sua obra, mas que diz que a coisa não foi bem como está no livro. Esse conto eu ainda não sei se vou escrever porque pra minha surpresa muita gente não conhece a obra "A Revolução dos Bichos", então de repente não agrade tanto...

3ª Apenas para deixar registrado, então, alguns dos contos publicados neste blog já foram publicados nos espaço vital, quais sejam: "Lavoisier Forense", "O Mensurável Sucesso de Dr. Jassey", "A Hermenêutica e o Gênio da Lâmpada", e mais recentemente, o "e-scritório_de_@dvocacia.com" , sendo que este último também foi publicado no Jornal do Comércio do Rio Grande do Sul, na edição do dia 13 de junho de 2008, o que pra mim foi uma honra verdadeiramente ímpar.

Você pode ir direto para a relação de romances forenses do Espaço Vital clicando no link que segue, para ver os nossos romances forenses, com as respectivas charges que são absolutamente geniais: http://www.espacovital.com.br/especialidades.php?limpa_sql_session=1&selespecialidade=45

Coloquei, também, em cada conto que foi publicado, o link correspondente no Site Espaço Vital para que vocês possam acessá-los com maior facilidade.

Então é isso, desejo uma leitura agradável a todos!

FALA QUE EU TE ESCUTO!


Após meses interceptando as ligações feitas àquele gabinete, Dr. Flagrâncio, o delegado, já não agüentava mais de dor nas costas. Durante praticamente todo o cerco, permanecera dentro do furgão, temendo perder o instante exato em que o Desembargador cometeria um erro. Este último, por seu lado, ressabiado que estava com o que denominava “febre das escutas telefônicas”, não dava ponto sem nó, e o Delegado já havia percebido isso. Preparava-se para mandar o seu pessoal recolher o equipamento, quando o telefone do gabinete tocou mais uma vez:

–Desembargador, ligação para o senhor...

–Não posso atender! – Bradou interrompendo a secretária – Invente qualquer besteira, diga que só atendemos após as 17h30min, que você só pode dar as informações que já estão na Internet. Ora! Você conhece as desculpas clássicas!

–É sua mãe no telefone, devo mesmo dizer isso a ela?

–Evidentemente que não. Passe logo essa ligação.

Um leve estampido e a senhora estava na linha:

–Mamãe, não é uma boa hora para ligar.

–E quando é que é uma boa hora, Nenê? – Em que pesem os inúmeros títulos ostentados pelo magistrado, para sua mãe ele sempre será Nenê, o caçula, a alegria da casa. – Você nem nos procura mais! Esse fim-de-semana vai ter uma confraternização no clube aqui da cidade. Por que você não vem? Todos aqui têm muito interesse em vê-lo. Todos querendo te agradar, te paparicar...

–Olha, eu não sei nada de clube, nem desses interesses de que você fala. Além disso, é natural que queiram me agradar, mas eu não me deixo ser agradado, ouviu bem?! NÃO ME DEIXO SER AGRADADO!

–Ok. Se você não gosta dos vizinhos, venha, pelo menos para ver como anda o Bingo. O bicho está precisando tanto da sua atenção. – Disse a velha senhora, em tom maternal.

–Bingo?! Bicho?! Eu não sei nada sobre isso! Eu quero que fique muito claro nessa ligação que eu não sei absolutamente nada sobe bingo e muito menos sobre bicho. – A voz do Desembargador era embaçada, tal era o seu nervosismo.

–Por acaso você é louco? O seu cachorrinho, o Bingo. O pobrezinho sente tanto sua falta. Você deve estar estressado. Tem se alimentado direito? Tem comido verdura? Quer que a mãe mande umas alfaces da nossa horta?

–Escute, mamãe, faça o que fizer, não me mande alfaces! Repito: NÃO ME MANDE ALFACES! Eu me recuso a receber alfaces, repolho, couve ou qualquer coisa do gênero! – Falou e bateu o telefone.

Ele venceu, pensou o Delegado, dando o trabalho por encerrado. Ordenou, então, ao seu pessoal que recolhessem o equipamento. Foi quando um dos homens o interpelou:

–Calma aí, Dr. Flagrâncio, ela deixou o telefone fora do gancho!

E do furgão seguiram escutando a velha senhora falar:

–Pai, esse teu filho, vou te contar, se não falar em propina, não conversa nem com a própria mãe!

terça-feira, 27 de maio de 2008

e-scritorio_de_@dvocacia.com


Dois jovens advogados tiveram uma idéia brilhante: fariam um escritório de advocacia virtual. Manteriam contato com os clientes através de sua página na Internet, via “Chat” e e-mail. Assim não necessitavam de grande infra-estrutura no escritório, pois jamais receberiam os clientes. Estes escolheriam no website do escritório o tipo de ação que desejassem ingressar e, na própria página, saberiam quais documentos digitalizados deveriam encaminhar via e-mail aos advogados. No mesmo local, através dos dados digitados pelos clientes, seriam gerados automaticamente procuração e boleto bancário relativo aos honorários.

Fizeram uma grande divulgação via Internet, a despeito das possíveis implicações éticas, mas advertiram que só poderiam entrar com ações relativas a determinadas matérias e somente nos foros que admitissem o processo eletrônico. Isso, ainda que limitasse um pouco a atuação, era mais do que compensado pela abrangência nacional e, quiçá, internacional do escritório especialista em processos eletrônicos.

A idéia foi maravilhosamente bem aceita pela comunidade virtual e uma enxurrada de processos começou a ser contratada on-line. Na mesma proporção o dinheiro entrava na conta dos advogados a quem incumbia o único trabalho de reencaminhar os documentos já digitalizados pelos próprios clientes para os endereços dos tribunais.

Mas o que parecia um paraíso não demorou a se converter em um pesadelo para os dois jovens. Isso porque os processos virtuais simplesmente pararam de andar! Especialmente aqueles distribuídos na própria comarca em que se situava o escritório. Sempre que os advogados acessavam os processos eletrônicos e solicitavam sua situação atualizada, a seguinte mensagem aparecia na tela:

“Erro no servidor ~(:-( Servidor não encontrado: mais de 5 minutos sem responder. Tente acessar mais tarde. Se o problema persistir, consulte o administrador do sistema.”

Com a demora nos processos os clientes, que eram freqüentadores assíduos da Internet, se indignaram. Convenhamos, este não é o tipo de clientela com quem alguém gostaria de se indispor. Não demorou para se criarem comunidades no “Orkut” difamando o escritório, hackers passaram a invadir sistematicamente os computadores dos jovens hermeneutas, roubando senhas e fotos que passaram a circular em correntes de e-mails.

A situação ficou de tal forma insustentável que os jovens decidiram quebrar o protocolo. Ao mais articulado incumbiu a tarefa de ir pessoalmente ao fórum e exigir providências. Ao outro incumbiu a missão de ficar no escritório respondendo às cobranças dos clientes.

Não demorou muito para o que saiu retornar cabisbaixo. O que ficara, ansioso pelas novidades, o interpelou imediatamente:

– E aí? Problema resolvido?

– Pior é que não...

– Que que houve?

– Servidor não encontrado...


http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?idnoticia=11578

PRETENSÃO RESISTIDA

Como podem ser graves as conseqüências de uma mera atração física, quando é tão intensa a ponto de ser confundida com o amor. Confusão desse tipo aconteceu em uma comarca do interior. A atração foi sendo cultivada ao longo de vários meses e inúmeras audiências pelo o advogado, militante que era, apesar da idade avançada, em relação a uma jovem e atraente defensora pública. Ele era casado. Ela, apesar de portar aliança de noivado, pouco parecia se importar com o compromisso. Era o que há algum tempo se apontaria como uma “mulher faceira.” Olhava para todas as direções e, segundo fontes cartoriais, com algum teor alcoólico, se entregava, sem problemas de consciência, a qualquer um que possuísse um mínimo de atributos físicos.

Era justamente o que faltava ao advogado. Ainda que idoso, queimava de desejos pela defensora que o instigava para tanto, lançando-lhe olhares e insertas. Mas era só surgir uma proposta mais concreta que ela lhe negava o que, a outros, com tanta facilidade consentia. No dia seguinte, reiniciava seu jogo de sedução, como se nada houvesse acontecido encerrando-o, ao menor sinal de insinuação pelo advogado.

Já transtornado com a situação, o doutor não se segurou e foi consultar suas fontes cartorárias, que tudo sabiam de dentro do fórum. De um oficial que a conhecia, soube que, apesar de faceira, a moça era culta e inteligentíssima, sendo grande apreciadora de poesia. O advogado viu aí sua oportunidade para tê-la. Se não era belo, a conquistaria no melhor estilo Cyrano de Bergerac. Na primeira audiência em que a encontrou, junto à proposta de acordo acostou o seguinte poema:

PRETENSÃO RESISTIDA

Por que, às minhas iniciais, sempre apresentar contestação?
Não há exceção.
Se trazendo ao feito a extinção,
Sabes não poder extinguir a pretensão.
E não se há que olvidar
Que, a esta jurisdição, não se aplica a perempção.
Isso porque, se bem me lembro,
Um dia, dela abriu-se mão.

O que fazer, então,
Pra trazer Paz à presente relação?
Já aviso, desde logo,
Que não mudarei de posição.

Não me canso de arcar com a sucumbência,
Sem, no entanto, desistir da minha ação
À qual proponho, se me permite a irreverência,
Em repúdio à atual jurisprudência,
Se resolva, através da “transação”.

O resultado foi o inverso do pretendido. Ofendida com o golpe baixo, utilizando-se, o homem, de uma ferramenta tão nobre para a consecução de um fim tão licencioso, a defensora deixou a sala de audiências aos prantos e logo pediu transferência, em razão do ato que denegrira sua honra.

Há quem diga que, a partir daquele dia, ela nunca mais foi infiel ao noivo, que pouco tempo depois veio a se tornar marido. O advogado, de sua parte, ficou inconformado:

– Por isso é que o Judiciário está tão entupido de processos: ninguém concilia...


http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?idnoticia=11954

quarta-feira, 9 de abril de 2008

A HERMENÊUTICA E O GÊNIO DA LÂMPADA

O jovem Bossinha, como era carinhosamente apelidado por seus coleguinhas, aos onze anos de idade, cursando a quinta série do ensino fundamental, já era o líder de sua turma de amigos. Era um menino esperto, rápido, desenvolveu-se antes dos demais. Ainda que detestasse os estudos, era dotado de uma perspicácia ímpar e não tinha dificuldade alguma em se posicionar, qualquer que fosse a discussão que se colocasse. Por esta mesma razão, era muito temido pelos professores, pois, uma vez exposto o seu posicionamento, não havia Abraham Lincoln que o convencesse do contrário. Não tinha medo, portanto, de questionar os mais consolidados e pacíficos conhecimentos da sociedade, o que fazia, frise-se, diariamente, frustrando até os mestres mais experientes que simplesmente não conseguiam cumprir com o conteúdo programático.

Bossinha adorava essa sua fama, pois em todas as rodas de conversa, fosse durante o recreio, festas de aniversário, pracinhas, ou quaisquer outras ocasiões sociais, sua opinião era sempre a mais aguardada, e, portanto, invariavelmente, os holofotes acabavam se voltando para ele. Certa feita, o assunto era “Lâmpada Mágica”. As crianças discutiam o que cada uma pediria se, ao topar com a tal lâmpada, saísse de lá um gênio disposto a conceder-lhe três pedidos:

–Eu pediria uma bicicleta da Barbie, um par de patins e um pônei! – Disse, da forma mais doce possível, uma bela menininha, dotada de meigos cachinhos dourados.

Faltava ainda a opinião de Bossinha e foi para ele que todos os rostos se dirigiram àquele momento. Fazendo o possível para conter um riso mais que incontinente, esboçando um olhar de superioridade, como houvesse acabado de sagrar-se vencedor do quesito em debate, elevou uma das sobrancelhas e, com uma impostação de voz semelhante à de um galã de rádio-novela, encerrou a questão:

–Eu pediria, desde logo, infinitos pedidos e teria o gênio para sempre como meu escravo! – Falou e mirou o olhar de cada um da roda buscando e obtendo a almejada aprovação do grupo.

Os meninos que ali estavam se entreolharam frustrados por não serem os autores da brilhante colocação. As meninas, por sua vez, se entreolharam suspirando de amores, enfeitiçadas que estavam pela personalidade ousada e indomável do anti-herói.

Quinze anos se passaram e Bossinha transformara-se em um jovem e promissor advogado. A velha alcunha já não lhe servia mais e agora era chamado pelo nome, precedido, é claro, pela distinção preferida pelos causídicos: Doutor Bossalino P. Dante. E foi por pura casualidade que veio Dr. Bossalino, ao inventariar os despojos de uma massa falida, na qualidade de síndico, a deparar-se com uma lâmpada a óleo visivelmente antiga. Riu-se consigo mesmo relembrando as repetidas situações de sua infância em que brincara de “Gênio da Lâmpada”, sempre constrangendo o eventual gênio a conceder-lhe infinitos pedidos. Nunca, por outro lado, havia tocado em um objeto como aquele, e não perdeu a oportunidade. Foi precavido ao olhar em volta, antes de tomar a lâmpada em suas mãos. Examinou-a de todos os ângulos, admirando a beleza dos desenhos abstratos entalhados em suas laterais, assim como dos detalhes que ornavam a alça.

A poeira, que se acumulava nos sulcos formados pelos ornamentos, depreciava em muito a beleza do objeto, mas se podia ter idéia de que se tratava de antigüidade valiosíssima e nobre. Após alguns segundos de ponderação entre o moral e o libertino, sucumbiu o primeiro e a lâmpada foi sorrateiramente “escorregada” para dentro da pasta do advogado, que deixou, então, as instalações da massa falida indo diretamente para seu apartamento, onde residia sozinho. Lá chegando, deixou a pasta de lado e foi logo para a pia da cozinha proceder na limpeza do objeto.

Ao observar que a sujeira era espessa, pegou uma esponja e esfregou com veemência. Foi quando uma fumaça rósea passou a sair de dentro do objeto como se em seu interior houvesse uma violenta reação química. O advogado deixou a lâmpada cair de sua mão dentro da pia e afastou-se sem tirar os olhos da fumaceira. Foi quando o impossível aconteceu: a fumaça se materializou em um gênio que, antes de mais nada, desligou a torneira que havia sido deixada aberta por Bossalino, em sua fuga frenética. Em seguida, olhando em volta à procura de seu amo, fixou os olhos nos de Bossalino e, esboçando um caloroso sorriso, deu início aos procedimentos de praxe:

–O senhor me acordou de um sono secular ao que serei eternamente grato. Em retribuição, atenderei a três de seus desejos, quaisquer que sejam, com apenas duas restrições: o livre arbítrio de ninguém poderá ser restringido, assim como vida alguma poderá ser retirada. – o Gênio gesticulava muito enquanto falava. Ao concluir, cruzou os braços e aguardou pela reação de seu amo.

Demorou bastante até que Bossalino compreendesse a situação. Balbuciou muito, desconfiou, questionou e interrogou o Gênio, até que finalmente aceitou a sua sorte, e preparou-se para disparar o primeiro pedido:

–Hum... então pode ser qualquer coisa, menos matar alguém, ou, por exemplo, compelir alguém a me amar, ou me obedecer, ou coisa parecida, não é?

–Sim, meu amo. – Respondeu o Gênio, estendendo as mãos e curvando-se em reverência.

–Bem, então eu gostaria de uma mansão na Ilha da Pintada, às margens do Guaíba...

Nem bem havia concluído a frase, e, num piscar de olhos, ambos já estavam dentro da nova e belíssima mansão do causídico.

–Excelente! – Exclamou o amo. – Agora que residirei tão longe do trabalho, precisarei de um belo meio de transporte. Que tal uma Ferrari F250?

–Bela escolha, meu amo. – Um simples aceno de cabeça e ambos se remeteram à garagem da mansão onde o automóvel desejado estava estacionado. – E agora, meu amo, qual será o seu último pedido?

Bossalino reservou como último golpe o que desde criança imaginava desferir, em caso a vida lhe apresentasse essa oportunidade. Nunca imaginou que a mesma surgiria, mas o fato é que a ela surgiu. Era sua segurança e sua felicidade que estavam em jogo e, das mesmas, não abriria mão. Ficou um tanto quanto constrangido por, após receber tantas graças do Gênio, ter de escravizá-lo, mas colocando tudo na balança, concluiu que seria ignorância de sua parte deixar a oportunidade passar:

–Por fim, meu querido amigo Gênio... – Engoliu em seco, pois tinha consciência de que o complemento da frase não agradaria em nada o interlocutor. – Não é sem pedir vênia máxima que... Veja... – Olhava nos olhos o Gênio que, a partir de um dado momento, apagou o sorriso do rosto e, franzindo a testa, esperou pelo fim do imbróglio. – Indo direto ao assunto: o que desejo são mais infinitos pedidos. – Terminou rapidamente a frase e baixou os olhos. Não tinha coragem de encarar o outro.

O Gênio riu muito. Considerou ofensiva a pretensão do advogado e, a partir daquele momento, passou a não chamá-lo mais de “amo”. Esclareceu que a regra era demasiado clara e que se tratavam de apenas três pedidos, sendo que desses três, o beneficiário poderia escolher o que quisesse, ressalvadas as duas já mencionadas hipóteses. Por seu lado, Dr. Bossalino não se convencia. Entendia que a única restrição é o direito à vida e ao livre arbítrio. Assim sendo, não haveria vedação a que se pedisse mais infinitos pedidos. Por esta razão, o Gênio estaria obrigado por força de contrato verbal a atendê-lo, sob pena de configurar-se o inadimplemento contratual, autorizando, portanto, a adoção das medidas judiciais cabíveis.

Em séculos de existência, nunca o Gênio havia sido submetido a uma situação semelhante, e nem precisava, pois, com o seu poder, que transcendia a compreensão limitada da inteligência humana, poderia, em um simples estalar de dedos, desvencilhar-se daquela circunstância, inclusive eliminando completamente da existência o evento de haver o jurista encontrado a Lâmpada Mágica. Havia, porém, outra força movendo o ente superior a aceitar o desafio de relegar ao Judiciário a apreciação do litígio, qual seja, a honra. Deixaria ele que a justiça do homem decidisse sobre o caso. Estava certo de que o bom senso prevaleceria e que se sagraria vencedor, ao final. Porém, sabia que a mesma honra que o movia a aceitar o desafio, também o compeliria a acatar a decisão final da justiça, fosse qual fosse.

–Por favor, entre na Justiça. Estarei feliz em expor meus argumentos ao Judiciário e tenho plena confiança de que você sairá sucumbente. – Disse o Gênio, sem nunca perder o ar de tranqüilidade.

–Pois considere feito. Amanhã, no que abrir o fórum, estarei distribuindo a ação. Só preciso saber uma coisa antes! – Exclamou o causídico de dedo em riste.

–E o que seria?

–Que endereço ponho para citação?

Pois bem, o fato é que o advogado cumpriu com o prometido e deu-se a angularização processual. É claro que não seria possível, aqui, esmiuçar os argumentos de ambas as partes, eis que autor e réu apresentaram largas fundamentações. Em pouco tempo, processo já consistia de pilhas e mais pilhas de volumes. O advogado defendia a causa de sua vida. O Gênio, por sua vez, defendia sua honra, o que fez com admirável habilidade, diga-se de passagem. Com ambos esmerando-se no patrocínio de seus interesses, e pela causa haver se tornado célebre, atraindo a atenção de muitos magistrados e servidores, não demorou para que se desse o desfecho do litígio, mesmo porque, pelo fato de a questão se tratar de mera interpretação de cláusulas de contrato verbal, não reuniam-se, na espécie, os requisitos que autorizavam seu seguimento para os Tribunais Superiores, em Brasília, DF.

No recurso de apelação apreciado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a sentença fora mantida na íntegra, por seus próprios jurídicos termos. E realmente, a sentença prolatada pelo juiz de primeira instância fora brilhante. Aparentemente, a melhor forma de explicar os critérios de convencimento da magistrada é acostando alguns dos trechos mais relevantes da decisão, que é o que se faz, a seguir:

(...)

Não se há que olvidar o fato de que, em sendo procedente a presente demanda, na forma como apresentada pelo autor, expor-se-ia o réu à iminente condição de eterno escravo daquele, o que é hipótese vedada não somente pela legislação trabalhista, mas, especialmente, pela Constituição Federal que, em seu art. 1º, III, consagra, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito, a Dignidade da Pessoa Humana.

Claro que controversa é a condição do réu como Pessoa Humana, já que trata-se de ser atemporal e com elementos que o poderiam elevar ao status de divindade. Por outro lado, se humano não fosse, poderia constar como sujeito passivo de demanda processual? Tampouco me parece correto negar ao Sr. Gênio a condição de Sujeito de Direitos, reduzindo-o à condição de coisa semovente. Ademais, o próprio autor lhe reconheceu a condição de humano e cidadão civilmente capaz, ao erigir-lhe como sujeito passivo da presente, o que não foi contestado, impondo-se o reconhecimento do autor como legitimado a abrigar-se sob o manto do já mencionado inciso III do art. 1º da Lei Maior. Em outras palavras, em que pese o réu notoriamente não pertencer à raça humana, a ela se equipara, no que concerne à
prestação jurisdicional.

(...)

A questão, portanto, só pode ser resolvida a partir da Hermenêutica. Assiste razão ao autor, segundo o critério literal de interpretação, o fato de que em matéria de contratos particulares, o que não é proibido é permitido. Sob essa ótica, aceitável a pretensão de infinitos pedidos. Entretanto, afortunadamente, o Direito não se socorre de apenas uma modalidade interpretativa. Teleologicamente, ou seja, perquirindo-se a finalidade a que a cláusula se destina, observa-se que o contrato em exame é criado como uma forma de agradecimento ao ato de libertação de uma situação de cárcere. Seria, portanto, inadmissível que um ato proposto em agradecimento a uma libertação se transformasse, per se, em uma nova situação de aprisionamento. Soma-se a isso, o fato de a pretensão do autor afrontar o disposto no art. 113 do Código Civil Brasileiro, segundo o qual: Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé (...)

Pode-se socorrer também do Direito Comparado, citando-se como precedente o caso do Sr. Aladim, que é de conhecimento público e onde o contratante teve direito a apenas três pedidos.

(...)

ANTE O EXPOSTO, JULGO IMPROCEDENTE A AÇÃO, e condeno o autor ao ônus da litigância de má-fé, por usar o expediente processual para subjugar alguém à condição de escravo. Ressalvo, entretanto, que o efeito da presente sentença é apenas o de invalidar a pretensão de infinitos pedidos, não eximindo o réu de atender ao último pedido do autor, que, corolário lógico, não poderá ser de infinitos pedidos(...)

O efeito da decisão final foi devastador para Bossalino, que verteu lágrimas, ao dela tomar conhecimento. O Gênio, por seu lado, na condição de ser superior, comoveu-se com a cena que presenciou. Observou que Bossalino conservava um lado infantil e compreendeu que o sucumbente não passava de uma criança grande, dotada de uma irresistível inocência e de uma ambição própria dos espíritos juvenis. Por esta razão, e observando que ainda lhe devia um pedido, foi ao seu encontro e o convidou para tomar um refrigerante, em um bar nas proximidades do Tribunal, onde tiveram uma conversa reconciliadora. Após sorver a última gota de seu refresco, com um olhar humilde, Bossalino indagou:

­–Quer dizer que, pela honra, você seria capaz de se submeter à condição de meu escravo?

–Exatamente. Neste caso, sim, pois a honra é a principal qualidade exigida para a posição de “Gênio da Lâmpada”. – Asseverou o Gênio, com orgulho.

–Devo fazer meu último pedido, então? – Bossalino mantinha o olhar humilde.

–Por favor, meu amo. – O Gênio estava sorridente outra vez.


–Gostaria que minha ação fosse procedente.




quarta-feira, 19 de março de 2008

O MENSURÁVEL SUCESSO DE DR. JASSEY


Ninguém irá esquecer o dia em que Dr. Jassey tomou posse como Diretor do Foro Central da Capital. É que ele realmente se diferenciava. Era um homem seguro, metódico. Não deixava margem para erros e, principalmente, não errava. Ganhou destaque, no meio da magistratura, por sua exitosa passagem pelas comarcas do interior, onde resolveu problemas que eram reclamações antigas dos funcionários, mas que permaneciam sem solução. Sem solução até que Dr. Jassey passasse por lá, naturalmente.

Assim, de memória, fica difícil lembrar cada grande feito do magistrado, pois cada comarca possuía os seus próprios problemas que lhe eram peculiares. Lembro de uma comarca em que o juiz não deixava os advogados retirar o processo em carga, o que sobrecarregava a copiadora que vivia enguiçando. Por essa razão, muitos advogados se mudavam para o cartório e ficavam lendo o processo lá mesmo, o que incomodava os servidores, pois, além de ouvirem muita reclamação, o balcão ficava amontoado de gente o dia inteiro e, o que era pior, os advogados ficavam até o último minuto do expediente para, só então, devolver o processo. Isso quando não excediam o horário, fazendo com que os funcionários tivessem que ficar mais tempo depois do fechamento da vara para recolocar os processos que estavam sendo consultados em suas prateleiras. Diz a lenda que ao sentar-se em sua cadeira para dar início a sua jurisdição já havia uma fila de funcionários insatisfeitos que lhe explicaram detalhadamente o problema: “Uhum, uhum, uhum”, dizia ele ao passo que a questão lhe era relatada. Concluída a exposição pelos servidores, se seguiu um “uhuuuum” de aproximadamente quatro segundos e então...:

-Já sei! - Com um olhar sério, mas satisfeito por haver encontrado a solução.

A partir daquele dia, foi colocada uma carteira escolar em um canto do cartório e só ali os processos poderiam ser estudados, um de cada vez. Além disso, as varas começaram a fechar para o atendimento externo, com uma hora de antecedência, para que não houvesse riscos de literais pedidos de última hora. Os números indicam que o grau de satisfação dos funcionários com o trabalho aumentou em níveis astronômicos, beirando 90%. Em outras palavras, uma questão que já perdurava por anos e mais anos fora resolvida pelo Dr. Jassey em sua primeira resolução. O mais incrível é que os advogados se adaptaram muito bem a essas novas regras, sendo que só reclamavam em seus círculos fechados, salvo um ou outro litígio que se iniciava e encerrava em sede de balcão.

Com uma carreira marcada por grandes soluções para problemas antigos e recorrentes, não tardou para que chegasse o magistrado à direção do Foro Central da Capital, sendo recebido com regozijo pelos servidores que viam nele o perfeito aliado na batalha diária que travavam contra os seus próprios demônios. A diferença, aqui, é que os funcionários eram representados por porta-vozes. E no primeiro dia, estava o magistrado em seu gabinete, quando sua secretária veio anunciar:

-Doutor, um representante dos funcionários gostaria de conversar com o senhor sobre uma questão de extravio de documentos.

-Excelente, deixe-o entrar. – Respondeu o magistrado, satisfeito com a possibilidade de resolver problemas e, um pouco, também, em ver o grau de autoridade que exercia.

-Excelência! – Exclamou, em tom de desabafo, o representante. – Estamos com um sério problema na distribuição dos processos!

-Fale mais sobre este problema, por favor. – Solicitou Dr. Jassey com muita calma e atenção.

-Os advogados estão entrando com as ações, certo?

-Uhum.

-Eles entregam a petição inicial, os documentos, cópia para citação do réu, pagam a guia de custas ali mesmo e saem felizes da vida. Daí nós é que temos que levar tudo para ser autuado, certo?

-Uhum.

-Daí, acontece que, entre a distribuição e a autuação, em 25% dos casos, nós extraviamos a guia. Em outros 25%, extraviamos os documentos. Em outros 25%, extraviamos a cópia para citação e em outros 25%....

-Já sei! Extraviam a própria inicial, não é?

-Não, doutor, nesses últimos 25%, extraviamos tudo: a inicial, os documentos, a cópia para citação e a guia. O colega que empurra o carrinho diz que se recusa a continuar trabalhando desse jeito, já que toda a culpa sempre recai em cima dele.

-Uhum, ok, Já sei! – exclamou o diretor. – Vamos fazer o seguinte: Quem é que disse que temos que fazer tudo em um único momento? De hoje em diante, o advogado mesmo é que vai ter que se dirigir à sala 1 com a inicial pronta e, então, fazer a guia. Vai ter que ir ao banco para realizar o pagamento, pois nós não vamos mais proporcionar isso, já que está nos atrasando. Depois, o próprio advogado, de posse da guia, inicial, cópia e documentos, vai levar tudo até um terceiro lugar onde nós só vamos ter o trabalho de receber e autuar o processo. Que tal?

-Excelente, doutor! Mas será que os advogados não vão reclamar, já que vão ter que enfrentar três filas em três lugares diferentes, sendo que no banco vão se misturar com quem está pagando contas de luz, água, telefone ou resolvendo outros problemas?

-Não. Eles vão nos agradecer, pois, assim, vamos parar de extraviar os processos deles. – Afirmou com grande convicção o magistrado.

-Muito obrigado, Dr. Jassey! – Com um grande sorriso no rosto e grande admiração, o representante concluiu a conversa.

Nem bem saiu o outro da sala, a secretária já veio anunciar o próximo compromisso, que era com um colega de profissão, o Juiz Qessab, um árabe dono de uma cabeleira escura e farta, que dispensou apresentações e foi logo expondo seus problemas:

-Você tem que dar um jeito nisso, Jassey! Do jeito que está não dá mais! – Reclamava sem nem olhar o diretor nos olhos, como se o culpasse por suas insatisfações.

-Calma, meu amigo, respire um pouco e me diga o que lhe aborrece. – Dr. Jassey era um diplomata.

-Ora, qual é o problema? – Pergunta obviamente retórica. – Os advogados, lógico!

-Uhum. – Essa era a forma de o diretor dizer “prossiga”, o que era bem compreendido por seus interlocutores.

-É que eles não param de vir ao cartório e ficam incomodando e conversando. O pior é que as estagiárias adoram eles, e eles flertam com elas e demoram mais ainda pra sair. Os nossos funcionários também não resistem à beleza das estagiárias dos advogados e ficam querendo aparecer, exibindo a sua autoridade, comprando briga e... ufa.... é o dia inteiro assim! Daí o balcão vira um tumulto e acabamos não conseguindo dar conta do trabalho interno.

Durante toda a explanação o diretor permaneceu atento, o que se podia perceber pelos constantes “Uhum, uhum, uhum”.

-Já sei! Já vi caso semelhante em uma comarca onde trabalhei. Naquela ocasião resolvemos o problema reduzindo o expediente externo em uma hora.

-Seria ótimo, mas eu acho que ainda não seria sufic... – Qessab fora bruscamente interrompido por mais uma exclamação:

-Já sei! Duas horas! Passaremos a abrir as varas para os advogados só depois das 10h30min da manhã, que tal?

-Sua administração promete, Jassey. Você está dando demonstrações de que sabe o que faz.

-Obrigado, colega, mas isso eu já sei.

Nem bem saiu pela porta, Dr. Qessab deu meia volta e, em pé, da entrada do gabinete, exclamou para Dr. Jassey:

-Você já sabe que, como não vão poder ser atendidos pessoalmente, os advogados vão abusar do nosso atendimento telefônico, não é?

-Sim, já sei.

-E o que pretende fazer? - Indagou Qessab.

-Uhuum. Já sei! Vamos reduzir também o horário do atendimento telefônico em pelo menos uma hora! Que tal?

-Ãh... – Nem teve tempo de ponderar sobre o assunto, Qessab já foi interrompido:

-Duas horas!

-Mas...

-Cinco. - Propõe Jassey, esperando aprovação.

-O senhor...

-Homem, você é difícil. Já sei! Seis horas de redução!

-Eu só queria...

-Já sei! Ainda assim é tempo demais, não é? Vamos reduzir o atendimento em sete horas, então. Daí os advogados só vão poder ligar durante uma hora por dia. E que seja a última hora do dia, assim são forçados a ligar num dia e, se for o caso, vir pessoalmente só no outro. Não precisaremos, daí, atender o mesmo advogado no mesmo dia duas vezes, que tal?

-Dr. Jassey, o senhor... o senhor... é brilhante! – Lágrimas desceram dos olhos de Qessab.

-Disso eu já sei, mas muito obrigado, mesmo assim.

E de fato, todas essas providências deram resultado. O índice de extravio dos processos foi reduzido a zero por cento, o grau de satisfação dos funcionários subiu trinta pontos percentuais vindo a atingir 80%, o tempo dos processos parados no cartório caiu 50% e o Dr. Jassey foi ovacionado por todos os servidores.

Um dia, porém, sua secretária entrou porta adentro com um fax na mão. Era da OAB e dizia que 100% dos advogados estavam indignados com essas providências e que a classe queria saber o que o excelentíssimo diretor fará para mudar essa situação. O magistrado tirou bruscamente o papel da mão da mulher, pegou a caneta e, sem hesitar, rabiscou alguma coisa em letras garrafais.

-Mande agora mesmo isso pra eles. – Disse sem se abalar o juiz.

A secretária nem teve tempo de ver do que se tratava. Foi até a máquina e passou o fax sem demora. Algum tempo depois, viu o papel sobre a sua mesa e, por curiosidade, resolveu dar uma olhada após a qual não conseguiu conter o riso. Instantes antes, chegava na OAB um fax escrito à mão, em letras maiúsculas e quase do tamanho da folha, que dizia com toda a convicção:

“-NÃO SEI!!!”





LAVOISIER FORENSE

Pela manhã, do seu escritório, o Advogado telefona para o fórum. Nada de mais, na verdade. Apenas observou que uma petição sua solicitando o adiamento da audiência, por uma série de motivos legítimos que aqui não vêm ao caso, ainda não havia sido juntada ao processo. Por motivos legítimos entenda-se: se o juiz houvesse lido a petição, com certeza haveria concedido o adiamento. Pois bem, o causídico havia protocolado o pedido com vinte dias de antecedência. Antes, conversara com a oficial encarregada, doravante denominada Oficial 1, que se negou a receber a peça, pois, naquele foro, todas as peças deveriam ser protocoladas no protocolo central, que, neste caso, ficava a longínquos cinco andares de distância.

- Compreendo perfeitamente a urgência, doutor, mas não posso receber sua petição. Pode protocolar no protocolo central, no primeiro andar. Diga que é urgente e diga meu nome pra eles que eles trazem rapidinho aqui pra mim. – Disse ela com um tom acolhedor, não se pode mentir.

O advogado, então, calejado das lidas forenses, fez muito mais do que isso. Pegou papel amarelo fosforescente, escreveu em letras garrafais: “URGENTE!!! Entregar para a Oficial 1!!! Audiência marcada para o dia ‘X’”. Ainda assim, não ficou tranqüilo, tirou um extrato com a informação atualizada do processo, onde constava a data da audiência. Grifou com caneta marca-texto verde fosforescente. Grampeou tudo junto e entregou no protocolo indicado, fazendo todas as observações pertinentes.

Até aí, tudo bem. O problema começou, na verdade, dezenove dias depois. Pela Internet não havia sequer menção à petição protocolada. Como o horário de atendimento telefônico no Judiciário gaúcho é de apenas uma hora (das 17h30m às 18h30m) é muito difícil conseguir completar uma chamada especificamente nesse horário, em razão do congestionamento das linhas, em especial tratando-se de alguns foros regionais como é o caso deste, em questão. O Advogado já estava há alguns dias tentando sem sucesso tal ligação e não teve outra escolha que não a de discar fora desta breve e disputada janela de tempo. É então que retornamos ao princípio deste escrito, quando o Advogado tentava contato telefônico com o cartório, sabendo, gize-se, que o fazia fora do horário próprio.

- Foro Regional Tal.
- Bom dia! Como vai a senhora?
- Bem obrigado...

Silêncio. Passou-se, então, um lapso de tempo como que se o Advogado esperasse que a telefonista lhe perguntasse também como ia ele, ou ao menos que indagasse qual o ramal desejado, enfim, houve um quê de vago na resposta da telefonista.

- Por favor, me passe para a X Vara Cível. – Disse o advogado com um tom de voz radiante!
- O horário de atendimento telefônico é das 17h30m às 18h30m, senhor. – Respondeu, implacavelmente, a telefonista. – Ou então o senhor terá que vir pessoalmente, senhor.
- Eu sei, mas, senhora, perceba, eu já liguei centenas de vezes no horário próprio e nunca consegui sequer completar a chamada. Trata-se de um equívoco por parte do seu setor de protocolo, e uma petição que era urgente sequer foi juntada ao processo e temos apenas um dia para o juiz recebê-la e despachar cancelando, ou não, a audiência. De qualquer forma, tenho que saber antes, pois o cliente não mora em Porto Alegre e não quero que ele venha para uma audiência desnecessária, ou que acabe nem mesmo acontecendo, ou mesmo, que deixe ele de vir e, então, se prejudicar de alguma forma, caso a tal audiência não seja adiada.

E ele deu mais uma justificativa:

- Senhora, ponha-se no meu lugar. Se eu deixo de ligar agora e espero até às 17h30m, quem garante que vou conseguir ligação?! E se não consigo resolver isso hoje, amanhã já não vai mais dar, não é?
- Senhor, eu vou fazer o seguinte, vou ligar pra lá e dizer exatamente isso pra eles. Se eles deixarem, eu passo a ligação. Se não, não.
- Ok. – Disse o causídico, certo de que o cartório iria concordar em abrir uma exceção no horário do atendimento telefônico, já que a ligação se dava pela única razão de que o próprio órgão público havia sido desidioso no trato com a sua petição urgente... Minutos e mais minutos se passaram.
- Senhor? – A voz feminina no telefone chamava.
- Sim? – Respondeu ele.
- Conversei bastante com eles, mas eles concluíram que o senhor deve ligar no horário de atendimento telefônico, ou se dirigir pessoalmente ao cartório. – Ela já falou com um tom de quem espera que, na próxima linha de diálogo, se instaure o litígio.
- Mas não é possível... – O Advogado cuidou para a que a expressão não saísse em tom de exclamação, pois sabia que na rotina forense, como em Lavoisier, “nada se perde, nada se ganha, tudo se negocia”. – Mas você falou tanto tempo com eles! Se fosse eu que tivesse falado, teria resolvido tudo em muito menos tempo, e ainda teria evitado duas idas ao fórum pra mim, uma audiência desnecessária para o Juiz e um atendimento no balcão a menos para quem quer que seja que você tenha conversado agora por telefone, compreende?
- Lamento, senhor. Bom d....
- Espera, espera, espera!!! Ok, moça. Entendi. – Disse ele, a tempo de evitar que ela desligasse o telefone. – Escute, enquanto eu esperava você falar com o cartório, meu sócio, que está aqui ao meu lado, me lembrou que temos que dar, também, uma palavrinha com o pessoal da contadoria aí do fórum...
- Lamento, senhor, mas a contadoria obedece ao mesmo horário para atendimento telefônico.

Era ódio o que transitava agora pelas artérias do furioso causídico. Todo o seu sangue via-se em seus olhos. Talvez a telefonista tenha até mesmo podido ouvir o ranger de dentes do doutor pelo telefone, sorte dela que não podia ver a expressão que se esculpiu instantaneamente ao rosto daquele. Neste momento, o advogado repassava em sua mente a frase que era o principal jargão que ensinava para seus assessores e estagiários - “na rotina forense, vale a Lei de Lavoisier: nada se perde, nada se ganha, tudo se negocia”. - Imbuído desse espírito, mas dando a incorreta interpretação à paródia que era de sua autoria, prosseguiu no diálogo com a telefonista:

- Ah, então você não pode passar a ligação pra ninguém fora do horário de atendimento telefônico, não é?
- Exato, senhor.
- Então me diga uma coisa, - a partir daí, nada de útil poderia resultar dessa negociação e o doutor sabia muito bem disso, mas prosseguiu mesmo assim – pra que o Judiciário paga uma telefonista que fica atendendo às ligações externas, fora do horário de atendimento externo, se essa, de qualquer forma, não vai poder transferir a ligação pra lugar nenhum!!!
- Acredito que para informar o horário de atendimento telefônico externo. Para que as pessoas que ligam fora do horário, voltem a ligar, desta vez, dentro do horário. Deseja mais alguma coisa, senhor?

Touché! Aqui a telefonista foi realmente habilidosa, pois foi capaz evitar o enfrentamento direto para com o advogado. Se ela houvesse se irritado e batido o telefone na cara daquele, isso não o teria irritado tanto como essa pergunta final padrão, decorada, mecânica, flagrantemente sarcástica... Foi a gota d’água, e o doutor finalmente respondeu a altura:

- Sim, desejo!!! (...) - Nada veio à mente do Advogado, àquele momento, que pudesse completar essa frase com o grau de ofensividade que a servidora merecia. Proferiu alguns chiados com a garganta, como se esta não fosse larga o suficiente para passarem todos os xingamentos que lutavam para libertar-se!!! – Uhahuehiiiii...

BLEIN!!! Foi o fim da chamada, assim como o fim do aparelho telefônico utilizado pelo doutor.

Naquele dia o Advogado descobriu que havia parodiado equivocadamente a lei do mestre Lavoisier, pois no Judiciário, como na natureza, sim, tudo se transforma, bastava ver o seu semblante ao princípio e ao fim daquela ligação. Porém tudo se perde como o cliente, a causa, ou o próprio telefone, mas alguma coisa, por pior que seja, sempre se ganha: experiência. Ou, pelo menos, é o que se espera...