sábado, 28 de agosto de 2010

JUIZ DE FUTEBOL

A rivalidade entre os dois times de futebol formados pelos servidores do fórum de determinada comarca já era conhecida e comentada até mesmo em cartórios de fora do Estado. Tudo começou em uma tola disputa de poder entre os servidores que exerciam funções meramente administrativas e aqueles que desenvolviam atividades estritamente jurisdicionais. Os primeiros reclamavam que os outros não cooperavam com as iniciativas da administração, por serem muito pedantes e acharem que as normas internas do foro os faziam perder o tempo inestimável em que poderiam estar prestando serviço à sociedade. Os judicantes acusavam os administradores de petulantes, por ficarem inventando regras banais apenas como vil meio de auto-afirmação interferindo na sagrada atividade jurisdicional.

Como a rixa não poderia chegar às vias de fato, os contendores decidiram resolver a questão dentro de campo. Daí surgiu a maior rivalidade do futebol forense: Regentes vs. Judicantes. Dr. Delonga, magistrado da comarca, que cumulava as funções de juiz e diretor do foro foi convocado para ambas equipes, mas decidiu adotar uma posição de neutralidade. Seguindo seus instintos e sabedor de que a missão do juiz é justamente a de trazer paz aos conflitos, decidiu apitar o Rejud, como ficou conhecido o clássico.

Começa a partida e um jogador do time dos Judicantes já dá uma entrada violenta em um adversário. Dr. Delonga, então, dirige-se rapidamente ao local do fato e tira o cartão vermelho do bolso quando, de repente, é tomado por um de seus instintos de magistrado. Dá-se conta de que seria arbitrariedade de sua parte aplicar a pena sem garantir o direito de ampla defesa ao infrator. Parado o cronômetro, o jogador explicou que não houve dolo de sua parte, que a canela do oponente é que veio em direção às travas de sua chuteira, sendo ele, na verdade vítima do incidente.

O juiz considerou válidos os argumentos do rapaz e decidiu não aplicar qualquer punição. Foi quando percebeu que seria absolutamente antijurídico garantir a uma parte a ampla defesa, sem garantir a outra o sagrado direito ao contraditório.

E assim foi que a partida começou a se estender. A cada apito sucedia a discussão garantindo-se às partes o direito à mais ampla defesa e ao contraditório. A partir de um tempo, permitiu-se também replica e tréplica. Obviamente, a partida teve que ser interrompida para recomeçar no fim de semana seguinte, e o mesmo aconteceu nas semanas e meses que se seguiram.

E este acabou sendo justamente o atrativo do Rejud. Enquanto em outros clássicos os vitoriosos vão se alternando a cada jogo, no Rejud, assistia-se sempre à continuação do mesmo jogo. A partida começou a atrasar ainda mais, quando os jogadores começaram a trazer seus advogados para reforçarem seus argumentos e, em alguns casos, servirem de testemunhas. A imensa partida tornou-se tão célebre, que assisti-la contava como horas de atividades extracurriculares nas universidades da região.

Entretanto, em um dado fim de semana, Dr. Delonga, que havia recusado diversas promoções para permanecer na comarca e continuar apitando o jogo épico, adoeceu e não pode comparecer. Foi chamado um árbitro profissional para apitar minutos restantes da partida que transcorreram como qualquer outro jogo de futebol. Anos de embates que culminam com um empate sem gols e um vazio no peito de todos os jogadores.

Frustrados, os capitães das equipes se encontram no circulo central:

–Não achei que fosse terminar assim, tão subitamente. Já havia me acostumado a jogar semanalmente o mesmo jogo – Disse o capitão dos Judicantes.

–Mas não pode terminar sem que haja um vencedor. Vamos jogar outra?

–Não. As cordas vocais de minha equipe estão exaustas. Que tal par-ou-ímpar?

E foi no par ou impar que se resolveu o clássico mais longo de todos os tempos. Mas é verdade é que até hoje não se sabe quem ganhou. O resultado do par-ou-ímpar foi contestado judicialmente e ainda tramita no foro daquela comarca, sob os cuidados do próprio Dr. Delonga. E ao indagá-lo sobre o tal processo obtém-se sempre a mesma resposta:

–Demorado, sim. Mas justo...
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sexta-feira, 21 de maio de 2010

CARÊNCIA DE AÇÃO


Quando Dr. Juílson viu o sol se pôr, da janela de seu confortável apartamento, na capital, não poderia imaginar que aquela não seria uma noite como as demais. Como era sua rotina de final de tarde, o nobre Juiz de Direito encontrava-se na cozinha preparando o chimarrão que sempre o acompanhava em suas leituras vespertinas, quando o som do abrir e fechar da porta da frente o fez perceber que sua esposa, a renomada advogada Dra. Themis, chegava do trabalho. Tal fato não fez com que Dr. Juílson movesse em um milímetro sua rotina, continuando a preparar o seu mate, como de costume. Talvez este tenha sido o seu erro fatal.

Sem pressa, o magistrado concluiu o preparo da bebida e, um pouco desajeitado, tentava equilibrar em ambas as mãos, a cuia, a térmica, um pacotinho de biscoitos, e uma pasta de documentos que conseguiu segurar embaixo de um dos braços. Com toda esta tralha, dirigir-se-ia para seu gabinete, mas ao dar meia volta deparou-se com sua esposa que já o observava a sabe-se lá quantos minutos. O susto foi tal que cuia, erva e documentos foram ao chão, transformando-se em uma mistura desastrosa. O juiz franziu o cenho e estava pronto para praguejar, quando observou que o cenho de Dra. Themis encontrava-se ainda mais franzido que o seu e o desabafo que viria em seguida não derivava de uma situação repentina. Era o rompimento da barragem que continha um oceano de emoções reprimidas ao longo de uma vida. Mas por tratarem-se de dois juristas experimentados, não é estranho que o litígio que se instaurava obedecesse aos mais altos padrões de erudição processual e de civilidade:

– Juílson! Eu não agüento mais essa sua inércia. Eu estou carente, carente de ação, entende?

O magistrado foi pego de surpresa, mas, refeito do golpe, reage à altura.

– Carente de ação? Ora, mas não culpe só a minha inércia, você sabe muito bem que para haver ação é preciso provocar o Juízo, e você não me provoca, há anos. Já eu dificilmente inicio um processo sem que haja contestação.

– Sim, é isso que você queria, não é? Que o processo corresse à revelia. Mas não adianta, tem que haver o exame das preliminares, antes de entrar no mérito. E mais, com você o rito é quase sempre sumaríssimo, isso quando a lide não fica pendente... Daí você já sabe, né? A execução fica frustrada.

– Calma aí, agora você está apelando. Quantas vezes eu já disse que não quero acordar o apenso, no quarto ao lado. Já é muito difícil colocá-lo para dormir. Quanto ao rito sumaríssimo, é que eu prezo a economia processual e detesto a morosidade. Além disso, às vezes até uma cautelar pode ser satisfativa.

– Sim, mas pra isso é preciso que se usem alguns recursos especiais. Seus recursos são sempre desertos, por absoluta ausência de preparo.

– Ah, mas quando eu tento manejar o recurso extraordinário você sempre nega seguimento. Fala dos meus recursos, mas sempre impugna todas as minhas tentativas de inovação processual. Isso quando não embarga a execução.

Dr. Juílson, então, percebeu que contestar a esposa não era a maneira mais célere para solucionar o litígio. Além disso, existia um fundo de verdade nos argumento de Dra. Themis. Ele só se recusava a aceitar a culpa exclusiva pela crise do relacionamento. Por isso, resolveu complementar:

– Acho que o pedido procede, em parte, pois pelo que vejo existem culpas concorrentes. Já que ambos somos sucumbentes vamos nos dar por reciprocamente quitados e compor amigavelmente o litígio.

– Não posso. É tarde demais. Agora já existem terceiros interessados. E já houve a preclusão consumativa.

– Meu Deus! Mas de minha parte não havia sequer suspeição!

– Sim. Há muito que sua cognição não é exauriente. Aliás, nossa relação está extinta. Só vim pegar o apenso em carga e fazer remessa para a casa da minha mãe.

E ao ver a mulher bater a porta atrás de si, Dr. Juílson ficou tentando compreender tudo o que havia acontecido. Após deliberar por alguns minutos, chegou a uma triste conclusão:

– E eu é que vou ter que pagar as custas...
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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

CRÉDITO E DESCRÉDITO



Dr. Flagrâncio, o delegado, adentra os suntuosos aposentos do temido imigrante italiano, Don Oblivio Iure, que o convida a sentar-se. Em uma poltrona, à sua frente, acomodou-se o anfitrião, indagando, desde logo, as pretensões do policial:

Delegato! Quantas vezes io já diche que non precisamos de polícia em questa regione? Io garanto a segurança acá, capiche?

–Sim, eu sei, Don Iure, mas eu fiquei sabendo que o seus homens andam ficando cada vez mais cruéis com os cidadãos! E havíamos combinado que a polícia não interviria no seu território, desde que as leis fossem respeitadas o que não vem acontecendo.

Ma como?! – Don Iure, então, volta-se para um de seus guarda-costas – Chama logo il consigliere! Perdona-me, delegati, ma pedi para que mio consigliere cuidasse para que nostra família respeite todos os entendimentos dos Tribunais Superiores.

E, nisso, chega o consigliere que, sabatinado pelo chefão, começa a explicar-se:

–Pois que o delegado indique onde a lei é descumprida para tomarmos providências!

–Ora, vocês estão impondo juros extorsivos sobre os “favores” financeiros que prestam o que torna as dívidas impagáveis. Isso é crime de usura, segundo o Decreto 22.626/30.

E o consigliere, de dedo em riste, fazendo que não com a cabeça, contesta:

–Não, signore! Pensando nisso, abrimos uma financeira no nome da família. Cosí, pela súmula 596 do Supremo, não se aplica a nós a Lei da Usura. Além disso, a súmula 382 do STJ diz que cobrar juros acima de 12% ao ano, por si só, não indica abusividade.

–Ora, mas isso não justifica a cobrança de taxas exageradas e abusivas! – Intervém o policial.

–Mas o que é exagerado, dottore? A lei não diz! A súmula 381 do STJ dispõe que nem o juiz pode conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas...

Sabendo que as informações eram precisas Dr. Flagrâncio mudou de rumo:

–Mas e quanto a esta lista que vocês fazem dos de clientes inadimplentes? Isso não seria intimidação e constrangimento ilegal?

–Constrangimento é inscrever os devedores no SPC e no SERASA que são visíveis no país inteiro! Que culpa temos que ninguém quer ter o seu nome inscrito na “listinha” do Don? Além disso, damos ciência pessoalmente ao cliente da sua inclusão na lista, algo de que é dispensado pela súmula 404 do STJ.

Frustrado, Dr. Flagrâncio deixa mansão de Don Iure. Na viatura, indagado por um de seus agentes, desabafa:

–É, bem que eu queria descer aquelas escadarias com aquele gângster algemado, mas nem que eu pudesse prendê-lo poderia algemá-lo, por causa desta última decisão do STF. Mas o que mais me dói é que as taxas que ele oferece são menores que as do meu Cartão de Crédito, e a minha dívida só faz aumentar.

E o agente indaga:

–Mas e por que o senhor não faz um empréstimo com o Don?

–Pois eu tentei.

– E aí?

–Eles consultam o SERASA...


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