quinta-feira, 26 de março de 2009

A DOUTRINA DE "CANUTILHO"


O Jovem advogado se aproxima da tribuna para proferir sua primeira sustentação oral dirigida a um tribunal. Mãos trêmulas denunciam a ansiedade que só não é maior que a honra de estar diante de algumas das mais importantes mentes da região, no que se refere à ciência do direito. Ora, por nenhum outro motivo é que tem seu discurso passado e repassado na memória. Precisão máxima de linguagem para que as mentes atentas e sagazes dos magistrados não encontrem qualquer falha em sua tese. Toga posta, papeis acomodados diante de si, mãos apoiadas sobre púlpito, coluna ereta, gel no cabelo, começa o discurso:

–Excelentíssimos Senhores Desembargadores...

O neófito hesita por um momento ao observar que a Desembargadora Presidenta da Turma, que também é relatora do processo, acena para alguém que se encontra na platéia. Imediatamente, um vulto de uma senhora carregando um saco enorme foi visto cruzando a sala de sessões, vindo a ajoelhar-se diante da magistrada que, nesse momento, após um giro concêntrico de 180º com sua cadeira, se encontrava de costas para a tribuna. Inicia-se uma animada conversa trilateral entre a senhora do saco, a senhora presidenta e a Digna representante do Ministério Público que agora estava à esquerda da desembargadora, face à posição reversa assumida por esta última.

O jovem advogado, mantém a compostura e prossegue com sua bela oratória como se nada de anormal estivesse a acontecer. Do saco, saíam peças de vestuário dos mais diversos tipos que eram examinados atentamente por todas.

A única ocasião em que a eminente relatora voltou os olhos para a tribuna foi quando o causídico fez uma expressa referência aos ensinamentos do grande mestre Canotilho[1]. Logo após, voltando-se novamente para sacoleira indagou:

–Não tem nada com “canutilho”? Miçanga, strass, paetê? Adoro lantejoulas.

–Não, o babado agora é decote com jabô ou frufru de tuli – responde a vendedora indagando, em seguida: – E esse cardigan da Michelle Obama?

–Ah, muito comportado. Só se colocasse um fuxico, de repente um bolerinho. – Aduz a compradora.

O advogado olha para os dois outros desembargadores da Turma, ávido por atenção. O revisor estava com olhos fixos para o decote de sua secretária que vestia um salopete evasê e, inclinando-se à frente para organizar uma pilha de processos, revelava generosas porções de sua anatomia. Do outro lado da mesa, a atenção do vogal era toda dirigida ao mesmo local para onde o revisor diria a sua.

Sem que nenhum dos componentes da turma ouvisse seu arrazoado, o jovem advogado não se surpreendeu com a derrota por unanimidade que se seguira. Depois desse dia, ao ser indagado sobre como fora em sua primeira sustentação oral, sempre respondia:

–A relatora tinha uma visão muito particular de Canotilho. Os outros dois, simplesmente, “tinham outra visão...”


[1] José Joaquim Gomes Canotilho: famoso autor de Direito Constitucional.
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