quarta-feira, 19 de março de 2008

O MENSURÁVEL SUCESSO DE DR. JASSEY


Ninguém irá esquecer o dia em que Dr. Jassey tomou posse como Diretor do Foro Central da Capital. É que ele realmente se diferenciava. Era um homem seguro, metódico. Não deixava margem para erros e, principalmente, não errava. Ganhou destaque, no meio da magistratura, por sua exitosa passagem pelas comarcas do interior, onde resolveu problemas que eram reclamações antigas dos funcionários, mas que permaneciam sem solução. Sem solução até que Dr. Jassey passasse por lá, naturalmente.

Assim, de memória, fica difícil lembrar cada grande feito do magistrado, pois cada comarca possuía os seus próprios problemas que lhe eram peculiares. Lembro de uma comarca em que o juiz não deixava os advogados retirar o processo em carga, o que sobrecarregava a copiadora que vivia enguiçando. Por essa razão, muitos advogados se mudavam para o cartório e ficavam lendo o processo lá mesmo, o que incomodava os servidores, pois, além de ouvirem muita reclamação, o balcão ficava amontoado de gente o dia inteiro e, o que era pior, os advogados ficavam até o último minuto do expediente para, só então, devolver o processo. Isso quando não excediam o horário, fazendo com que os funcionários tivessem que ficar mais tempo depois do fechamento da vara para recolocar os processos que estavam sendo consultados em suas prateleiras. Diz a lenda que ao sentar-se em sua cadeira para dar início a sua jurisdição já havia uma fila de funcionários insatisfeitos que lhe explicaram detalhadamente o problema: “Uhum, uhum, uhum”, dizia ele ao passo que a questão lhe era relatada. Concluída a exposição pelos servidores, se seguiu um “uhuuuum” de aproximadamente quatro segundos e então...:

-Já sei! - Com um olhar sério, mas satisfeito por haver encontrado a solução.

A partir daquele dia, foi colocada uma carteira escolar em um canto do cartório e só ali os processos poderiam ser estudados, um de cada vez. Além disso, as varas começaram a fechar para o atendimento externo, com uma hora de antecedência, para que não houvesse riscos de literais pedidos de última hora. Os números indicam que o grau de satisfação dos funcionários com o trabalho aumentou em níveis astronômicos, beirando 90%. Em outras palavras, uma questão que já perdurava por anos e mais anos fora resolvida pelo Dr. Jassey em sua primeira resolução. O mais incrível é que os advogados se adaptaram muito bem a essas novas regras, sendo que só reclamavam em seus círculos fechados, salvo um ou outro litígio que se iniciava e encerrava em sede de balcão.

Com uma carreira marcada por grandes soluções para problemas antigos e recorrentes, não tardou para que chegasse o magistrado à direção do Foro Central da Capital, sendo recebido com regozijo pelos servidores que viam nele o perfeito aliado na batalha diária que travavam contra os seus próprios demônios. A diferença, aqui, é que os funcionários eram representados por porta-vozes. E no primeiro dia, estava o magistrado em seu gabinete, quando sua secretária veio anunciar:

-Doutor, um representante dos funcionários gostaria de conversar com o senhor sobre uma questão de extravio de documentos.

-Excelente, deixe-o entrar. – Respondeu o magistrado, satisfeito com a possibilidade de resolver problemas e, um pouco, também, em ver o grau de autoridade que exercia.

-Excelência! – Exclamou, em tom de desabafo, o representante. – Estamos com um sério problema na distribuição dos processos!

-Fale mais sobre este problema, por favor. – Solicitou Dr. Jassey com muita calma e atenção.

-Os advogados estão entrando com as ações, certo?

-Uhum.

-Eles entregam a petição inicial, os documentos, cópia para citação do réu, pagam a guia de custas ali mesmo e saem felizes da vida. Daí nós é que temos que levar tudo para ser autuado, certo?

-Uhum.

-Daí, acontece que, entre a distribuição e a autuação, em 25% dos casos, nós extraviamos a guia. Em outros 25%, extraviamos os documentos. Em outros 25%, extraviamos a cópia para citação e em outros 25%....

-Já sei! Extraviam a própria inicial, não é?

-Não, doutor, nesses últimos 25%, extraviamos tudo: a inicial, os documentos, a cópia para citação e a guia. O colega que empurra o carrinho diz que se recusa a continuar trabalhando desse jeito, já que toda a culpa sempre recai em cima dele.

-Uhum, ok, Já sei! – exclamou o diretor. – Vamos fazer o seguinte: Quem é que disse que temos que fazer tudo em um único momento? De hoje em diante, o advogado mesmo é que vai ter que se dirigir à sala 1 com a inicial pronta e, então, fazer a guia. Vai ter que ir ao banco para realizar o pagamento, pois nós não vamos mais proporcionar isso, já que está nos atrasando. Depois, o próprio advogado, de posse da guia, inicial, cópia e documentos, vai levar tudo até um terceiro lugar onde nós só vamos ter o trabalho de receber e autuar o processo. Que tal?

-Excelente, doutor! Mas será que os advogados não vão reclamar, já que vão ter que enfrentar três filas em três lugares diferentes, sendo que no banco vão se misturar com quem está pagando contas de luz, água, telefone ou resolvendo outros problemas?

-Não. Eles vão nos agradecer, pois, assim, vamos parar de extraviar os processos deles. – Afirmou com grande convicção o magistrado.

-Muito obrigado, Dr. Jassey! – Com um grande sorriso no rosto e grande admiração, o representante concluiu a conversa.

Nem bem saiu o outro da sala, a secretária já veio anunciar o próximo compromisso, que era com um colega de profissão, o Juiz Qessab, um árabe dono de uma cabeleira escura e farta, que dispensou apresentações e foi logo expondo seus problemas:

-Você tem que dar um jeito nisso, Jassey! Do jeito que está não dá mais! – Reclamava sem nem olhar o diretor nos olhos, como se o culpasse por suas insatisfações.

-Calma, meu amigo, respire um pouco e me diga o que lhe aborrece. – Dr. Jassey era um diplomata.

-Ora, qual é o problema? – Pergunta obviamente retórica. – Os advogados, lógico!

-Uhum. – Essa era a forma de o diretor dizer “prossiga”, o que era bem compreendido por seus interlocutores.

-É que eles não param de vir ao cartório e ficam incomodando e conversando. O pior é que as estagiárias adoram eles, e eles flertam com elas e demoram mais ainda pra sair. Os nossos funcionários também não resistem à beleza das estagiárias dos advogados e ficam querendo aparecer, exibindo a sua autoridade, comprando briga e... ufa.... é o dia inteiro assim! Daí o balcão vira um tumulto e acabamos não conseguindo dar conta do trabalho interno.

Durante toda a explanação o diretor permaneceu atento, o que se podia perceber pelos constantes “Uhum, uhum, uhum”.

-Já sei! Já vi caso semelhante em uma comarca onde trabalhei. Naquela ocasião resolvemos o problema reduzindo o expediente externo em uma hora.

-Seria ótimo, mas eu acho que ainda não seria sufic... – Qessab fora bruscamente interrompido por mais uma exclamação:

-Já sei! Duas horas! Passaremos a abrir as varas para os advogados só depois das 10h30min da manhã, que tal?

-Sua administração promete, Jassey. Você está dando demonstrações de que sabe o que faz.

-Obrigado, colega, mas isso eu já sei.

Nem bem saiu pela porta, Dr. Qessab deu meia volta e, em pé, da entrada do gabinete, exclamou para Dr. Jassey:

-Você já sabe que, como não vão poder ser atendidos pessoalmente, os advogados vão abusar do nosso atendimento telefônico, não é?

-Sim, já sei.

-E o que pretende fazer? - Indagou Qessab.

-Uhuum. Já sei! Vamos reduzir também o horário do atendimento telefônico em pelo menos uma hora! Que tal?

-Ãh... – Nem teve tempo de ponderar sobre o assunto, Qessab já foi interrompido:

-Duas horas!

-Mas...

-Cinco. - Propõe Jassey, esperando aprovação.

-O senhor...

-Homem, você é difícil. Já sei! Seis horas de redução!

-Eu só queria...

-Já sei! Ainda assim é tempo demais, não é? Vamos reduzir o atendimento em sete horas, então. Daí os advogados só vão poder ligar durante uma hora por dia. E que seja a última hora do dia, assim são forçados a ligar num dia e, se for o caso, vir pessoalmente só no outro. Não precisaremos, daí, atender o mesmo advogado no mesmo dia duas vezes, que tal?

-Dr. Jassey, o senhor... o senhor... é brilhante! – Lágrimas desceram dos olhos de Qessab.

-Disso eu já sei, mas muito obrigado, mesmo assim.

E de fato, todas essas providências deram resultado. O índice de extravio dos processos foi reduzido a zero por cento, o grau de satisfação dos funcionários subiu trinta pontos percentuais vindo a atingir 80%, o tempo dos processos parados no cartório caiu 50% e o Dr. Jassey foi ovacionado por todos os servidores.

Um dia, porém, sua secretária entrou porta adentro com um fax na mão. Era da OAB e dizia que 100% dos advogados estavam indignados com essas providências e que a classe queria saber o que o excelentíssimo diretor fará para mudar essa situação. O magistrado tirou bruscamente o papel da mão da mulher, pegou a caneta e, sem hesitar, rabiscou alguma coisa em letras garrafais.

-Mande agora mesmo isso pra eles. – Disse sem se abalar o juiz.

A secretária nem teve tempo de ver do que se tratava. Foi até a máquina e passou o fax sem demora. Algum tempo depois, viu o papel sobre a sua mesa e, por curiosidade, resolveu dar uma olhada após a qual não conseguiu conter o riso. Instantes antes, chegava na OAB um fax escrito à mão, em letras maiúsculas e quase do tamanho da folha, que dizia com toda a convicção:

“-NÃO SEI!!!”





LAVOISIER FORENSE

Pela manhã, do seu escritório, o Advogado telefona para o fórum. Nada de mais, na verdade. Apenas observou que uma petição sua solicitando o adiamento da audiência, por uma série de motivos legítimos que aqui não vêm ao caso, ainda não havia sido juntada ao processo. Por motivos legítimos entenda-se: se o juiz houvesse lido a petição, com certeza haveria concedido o adiamento. Pois bem, o causídico havia protocolado o pedido com vinte dias de antecedência. Antes, conversara com a oficial encarregada, doravante denominada Oficial 1, que se negou a receber a peça, pois, naquele foro, todas as peças deveriam ser protocoladas no protocolo central, que, neste caso, ficava a longínquos cinco andares de distância.

- Compreendo perfeitamente a urgência, doutor, mas não posso receber sua petição. Pode protocolar no protocolo central, no primeiro andar. Diga que é urgente e diga meu nome pra eles que eles trazem rapidinho aqui pra mim. – Disse ela com um tom acolhedor, não se pode mentir.

O advogado, então, calejado das lidas forenses, fez muito mais do que isso. Pegou papel amarelo fosforescente, escreveu em letras garrafais: “URGENTE!!! Entregar para a Oficial 1!!! Audiência marcada para o dia ‘X’”. Ainda assim, não ficou tranqüilo, tirou um extrato com a informação atualizada do processo, onde constava a data da audiência. Grifou com caneta marca-texto verde fosforescente. Grampeou tudo junto e entregou no protocolo indicado, fazendo todas as observações pertinentes.

Até aí, tudo bem. O problema começou, na verdade, dezenove dias depois. Pela Internet não havia sequer menção à petição protocolada. Como o horário de atendimento telefônico no Judiciário gaúcho é de apenas uma hora (das 17h30m às 18h30m) é muito difícil conseguir completar uma chamada especificamente nesse horário, em razão do congestionamento das linhas, em especial tratando-se de alguns foros regionais como é o caso deste, em questão. O Advogado já estava há alguns dias tentando sem sucesso tal ligação e não teve outra escolha que não a de discar fora desta breve e disputada janela de tempo. É então que retornamos ao princípio deste escrito, quando o Advogado tentava contato telefônico com o cartório, sabendo, gize-se, que o fazia fora do horário próprio.

- Foro Regional Tal.
- Bom dia! Como vai a senhora?
- Bem obrigado...

Silêncio. Passou-se, então, um lapso de tempo como que se o Advogado esperasse que a telefonista lhe perguntasse também como ia ele, ou ao menos que indagasse qual o ramal desejado, enfim, houve um quê de vago na resposta da telefonista.

- Por favor, me passe para a X Vara Cível. – Disse o advogado com um tom de voz radiante!
- O horário de atendimento telefônico é das 17h30m às 18h30m, senhor. – Respondeu, implacavelmente, a telefonista. – Ou então o senhor terá que vir pessoalmente, senhor.
- Eu sei, mas, senhora, perceba, eu já liguei centenas de vezes no horário próprio e nunca consegui sequer completar a chamada. Trata-se de um equívoco por parte do seu setor de protocolo, e uma petição que era urgente sequer foi juntada ao processo e temos apenas um dia para o juiz recebê-la e despachar cancelando, ou não, a audiência. De qualquer forma, tenho que saber antes, pois o cliente não mora em Porto Alegre e não quero que ele venha para uma audiência desnecessária, ou que acabe nem mesmo acontecendo, ou mesmo, que deixe ele de vir e, então, se prejudicar de alguma forma, caso a tal audiência não seja adiada.

E ele deu mais uma justificativa:

- Senhora, ponha-se no meu lugar. Se eu deixo de ligar agora e espero até às 17h30m, quem garante que vou conseguir ligação?! E se não consigo resolver isso hoje, amanhã já não vai mais dar, não é?
- Senhor, eu vou fazer o seguinte, vou ligar pra lá e dizer exatamente isso pra eles. Se eles deixarem, eu passo a ligação. Se não, não.
- Ok. – Disse o causídico, certo de que o cartório iria concordar em abrir uma exceção no horário do atendimento telefônico, já que a ligação se dava pela única razão de que o próprio órgão público havia sido desidioso no trato com a sua petição urgente... Minutos e mais minutos se passaram.
- Senhor? – A voz feminina no telefone chamava.
- Sim? – Respondeu ele.
- Conversei bastante com eles, mas eles concluíram que o senhor deve ligar no horário de atendimento telefônico, ou se dirigir pessoalmente ao cartório. – Ela já falou com um tom de quem espera que, na próxima linha de diálogo, se instaure o litígio.
- Mas não é possível... – O Advogado cuidou para a que a expressão não saísse em tom de exclamação, pois sabia que na rotina forense, como em Lavoisier, “nada se perde, nada se ganha, tudo se negocia”. – Mas você falou tanto tempo com eles! Se fosse eu que tivesse falado, teria resolvido tudo em muito menos tempo, e ainda teria evitado duas idas ao fórum pra mim, uma audiência desnecessária para o Juiz e um atendimento no balcão a menos para quem quer que seja que você tenha conversado agora por telefone, compreende?
- Lamento, senhor. Bom d....
- Espera, espera, espera!!! Ok, moça. Entendi. – Disse ele, a tempo de evitar que ela desligasse o telefone. – Escute, enquanto eu esperava você falar com o cartório, meu sócio, que está aqui ao meu lado, me lembrou que temos que dar, também, uma palavrinha com o pessoal da contadoria aí do fórum...
- Lamento, senhor, mas a contadoria obedece ao mesmo horário para atendimento telefônico.

Era ódio o que transitava agora pelas artérias do furioso causídico. Todo o seu sangue via-se em seus olhos. Talvez a telefonista tenha até mesmo podido ouvir o ranger de dentes do doutor pelo telefone, sorte dela que não podia ver a expressão que se esculpiu instantaneamente ao rosto daquele. Neste momento, o advogado repassava em sua mente a frase que era o principal jargão que ensinava para seus assessores e estagiários - “na rotina forense, vale a Lei de Lavoisier: nada se perde, nada se ganha, tudo se negocia”. - Imbuído desse espírito, mas dando a incorreta interpretação à paródia que era de sua autoria, prosseguiu no diálogo com a telefonista:

- Ah, então você não pode passar a ligação pra ninguém fora do horário de atendimento telefônico, não é?
- Exato, senhor.
- Então me diga uma coisa, - a partir daí, nada de útil poderia resultar dessa negociação e o doutor sabia muito bem disso, mas prosseguiu mesmo assim – pra que o Judiciário paga uma telefonista que fica atendendo às ligações externas, fora do horário de atendimento externo, se essa, de qualquer forma, não vai poder transferir a ligação pra lugar nenhum!!!
- Acredito que para informar o horário de atendimento telefônico externo. Para que as pessoas que ligam fora do horário, voltem a ligar, desta vez, dentro do horário. Deseja mais alguma coisa, senhor?

Touché! Aqui a telefonista foi realmente habilidosa, pois foi capaz evitar o enfrentamento direto para com o advogado. Se ela houvesse se irritado e batido o telefone na cara daquele, isso não o teria irritado tanto como essa pergunta final padrão, decorada, mecânica, flagrantemente sarcástica... Foi a gota d’água, e o doutor finalmente respondeu a altura:

- Sim, desejo!!! (...) - Nada veio à mente do Advogado, àquele momento, que pudesse completar essa frase com o grau de ofensividade que a servidora merecia. Proferiu alguns chiados com a garganta, como se esta não fosse larga o suficiente para passarem todos os xingamentos que lutavam para libertar-se!!! – Uhahuehiiiii...

BLEIN!!! Foi o fim da chamada, assim como o fim do aparelho telefônico utilizado pelo doutor.

Naquele dia o Advogado descobriu que havia parodiado equivocadamente a lei do mestre Lavoisier, pois no Judiciário, como na natureza, sim, tudo se transforma, bastava ver o seu semblante ao princípio e ao fim daquela ligação. Porém tudo se perde como o cliente, a causa, ou o próprio telefone, mas alguma coisa, por pior que seja, sempre se ganha: experiência. Ou, pelo menos, é o que se espera...