terça-feira, 22 de dezembro de 2009

MILAGRE FORENSE DE NATAL

Papai Noel, em pessoa, adentra uma determinada Vara da Fazenda Pública de um foro qualquer deste Brasil. Ao ser atendido, o Bom Velhinho relata sua situação :

–Veja, ano passado eu recebi uma multa por falta de licenciamento do meu trenó. Daí, meu advogado entrou com ação anulatória e eu quero ver como é que está o processo, pois o natal está chegando e não pude licenciar o veículo este ano.

–Ho, ho, ho! – Sorriu, sarcástica, a servidora após consultar o andamento do processo.

–O que foi? Ganhei a causa?

– Mas é claro que não. O réu nem foi citado ainda. Seu processo nem começou!

–Como assim, “nem começou”? Este processo vai fazer um ano!

Indignada com a indignação do velho Noel, ela retruca:

–É que esta vara está abarrotada de processos. Então, para nos ajudar, criaram o “projeto reforço” e todos os processos foram redistribuídos pra lá, mas eles não deram conta. Daí, criaram o “projeto reforço do reforço”, e depois de tanto reforço tiveram que fazer um “projeto descanso” e logo depois um novo “projeto reforço”. Daí o seu processo acabou sendo remetido de volta pra nós porque o Juiz do “projeto reforço” sofreu uma Lesão por Esforço Repetitivo.

A mulher dá de ombros e retorna a seus afazeres. A Noel resta apenas um último trunfo na manga:

–Mas se eu não licenciar o meu trenó, não haverá Natal no Brasil, este ano. Veja, eu sei quem a senhora é. Já lhe trouxe muitos presentes. A senhora era uma criança doce! O que houve com a senhora?

Lágrimas começam a brotar incontinentes dos olhos da servidora que desabafa:

–São esses milhares de processos! Eu furo, grampeio, carimbo e isso nunca termina! Isso vai me deixar louca!

E o Bom Velhinho, justificando sua alcunha, conforta-a:

–E você esquece com quem está falando? O Natal está chegando, ho, ho, ho! Que tal um milagre de Natal? Todos os anos, meus duendes fazem brinquedos para todas as crianças do mundo! Pois vou trazer os duendes para este cartório e vamos dar andamento a todos estes processos, ho, ho, ho!

E, de fato, os duendes vieram em grande número e com muita eficiência e cantoria deram conta de todos os processos que estavam atrasados.

Algum tempo depois, véspera de natal, renas a postos, documentos do trenó em dia, e o Papai Noel observa que os brinquedos não foram embarcados. Preocupado com a ocorrência, inédita em séculos, adentra sua fábrica de brinquedos e encontra-a deserta.

Desesperado, Noel sai voando com seu trenó a procura dos duendes. Ao vislumbrar um deles andando despreocupado pelas ruas, o Bom Velhinho interpela-o:

–Hei! Hoje é Natal! Por que vocês não estão trabalhando? Vocês não aprenderam nada naquele mutirão forense acerca do Milagre de Natal?

E sem demonstrar qualquer surpresa, o duende responde:

–Sim! Mas também aprendemos sobre o Milagre do Feriadão de Natal.
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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

SELEÇÃO NATURAL

Dois recém formados Bacharéis em Direito passeavam por um museu de história natural quando observaram que um dos monitores do local estava organizando um grupo para fazerem uma excursão pelo estabelecimento. O tempo livre proporcionado pelo final das aulas permitiu que os rapazes desfrutassem do passeio.

No meio da jornada, quando ainda encontravam-se na seção dos animais africanos, já estavam enfastiados e não mais conseguiam manter sua atenção no guia do museu. Foi então que começaram a conversar sobre o assunto mais popular entre os Bacharéis:

–Hei, Poltrão, você já começou a se preparar para o Exame de Ordem?

–Claro que não. Minha mãe está contratando um advogado para mover uma ação que vai acabar com a necessidade de prestar o Exame. Essa exigência para a obtenção da Credencial de Advogado é absurda e inconstitucional! Quem deve medir a qualidade do ensino é o Ministério da Educação e não a OAB! Isso é uma injustiça com quem estudou anos para se formar e, então, não poder exercer a profissão.

Nesse momento a narrativa do monitor se faz ouvir por ambos: “Observem que os gnus machos disputam entre si as fêmeas e os mais fortes acabam formando grandes haréns. Isso pode parecer um tanto injusto para com os demais gnus, mas é de grande valia para espécie que precisa ser preservada.

Os olhos dos jovens, que estavam fixos no palestrante voltam a fitar-se:

–De qualquer sorte – prosseguiu Poltrão – a medida que estamos movendo não beneficiará só a mim. Beneficiará a todos os bacharéis no Brasil inteiro. Não estou pensando apenas em mim. Faço isso pela coletividade. Não estou com medo de fazer a prova...

O guia os interrompe mais uma vez: “é claro que a gazela tem medo do leão, seu predador natural. Mas o que ela não sabe é que o leão possui uma função essencial no seu ecossistema. Se o leão não existisse, haveria uma explosão populacional de gazelas que iria consumir todos os recursos naturais do seu meio ambiente, levando muitas, senão todas, à extinção. Não haveria pasto para todos os indivíduos.”

–Bem, mas, há alguns anos, nem era necessário fazer a prova para obter a Carteira da Ordem.

E prossegue o anfitrião: “E agora, vamos conhecer o trabalho de Charles Darwin, segundo o qual as espécies evoluem, tendo que se adaptar às novas realidades que se lhe apresentam. Essa adaptação dá-se gradualmente, através de uma seleção natural.”

Os bacharéis deixaram o museu perguntando-se se o guia estava escutando a conversa paralela que mantiveram entre si.

Tempos depois, os amigos se encontraram e aproveitaram para retomar o assunto que iniciaram no museu, o Exame de Ordem :

–Graças a Deus, me matei de estudar, mas consegui passar. E você Poltrão? Se eu tive que fazer a prova significa que sua ação foi improcedente, não?

–Pois é: deu zebra.
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sexta-feira, 18 de setembro de 2009

DESPERTANDO PARA A ADVOCACIA

Em uma dada manhã, o advogado acorda com uma sensação de bem estar ímpar e permitiu-se ficar alguns minutos a mais na cama, assistindo ao sono sereno de sua mulher, hábito que há tempo dera lugar à estafante rotina forense.

A preguiçosa manhã, entretanto, lhe havia custado caro. Tinha audiência logo cedo, mas carecia de uma vital informação por parte do cartório. Não havia mais tempo a perder e a urgência o obrigou a tentar uma ligação:

–Foro Regional, bom dia! – Atendeu a jovial telefonista.

–Bom dia. Eu preciso falar com a vara cível!

–O horário de atendimento telefônico na Justiça Estadual do Rio Grande do Sul é entre 17h30m e 18h30m.

–Eu sei disso, mas é algo muito importante!

–Nesse caso, vou transferir agora mesmo.

Surpreso, o advogado não conseguia acreditar. Não só sua chamada foi atendida fora do horário, como os atendentes compreenderam o motivo da ligação e lhe prestaram todas as informações, concluindo que: ”Somos servidores e estamos aqui pra servir!”

Chegando ao foro, sobravam vagas gratuitas no estacionamento da OAB. Já na sala de audiências, deparou-se com a advogada da parte contrária, conhecida por buscar sempre a derrota humilhante de seus oponentes. Apesar dessas credenciais, o advogado resolveu fazer uma proposta de acordo ao que aquela respondeu:

–O senhor está louco doutor? A minha cliente tem direito!

E, em contradita, veio a resposta de praxe:

–Pois é, doutora, mas toda a ação possui um risco... Assim as duas partes ganham, ainda que um pouco menos...

–É verdade, doutor. O senhor me convenceu. Muito obrigado. – Respondera com um sorriso, a adversária.

Agora o advogado estava radiante! Feito o acordo, dirigiu-se ao Tribunal para proferir uma sustentação oral. Na sala de sessões, as palavras derramadas pelo causídico foram sorvidas com deleite pelos desembargadores que se mantiveram atentos à apresentação inteira, não poupando elogios no momento do voto.

De volta ao escritório, o hermeneuta encontra-se com um cliente que reconhecia seus méritos e que vinha pagar, adiantado, uns honorários. O pagamento foi efetuado, em dinheiro, e acompanhado de um caloroso “muito obrigado”.

E o advogado ficou a contemplar o dia único que vivenciara! Se todos os dias fossem assim... Um ato de cortesia aqui e ali. Uma demonstração de respeito e, por que não dizer, de reconhecimento. Resolveu deixar de devaneios e foi ver qual era seu próximo compromisso.

Ao abrir sua agenda, entrou em choque. Havia apenas um compromisso escrito em letras garrafais: 6h: ACORDAR! Instantes depois, estava em sua cama com o despertador a tocar. Ao lado sua mulher o contemplava com um sorriso. Disse ela:

–Eu estava vendo você dormir. Você parecia estar tendo um sonho lindo.

E, em resposta, desabafa o causídico:

–Sim. E gora começa o pesadelo.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

PSICOADVOCACIA


Dois grandes terapeutas que litigavam sobre a autoria de determinada tese científica se encontram no saguão do fórum, minutos antes da audiência. O aperto de mãos hipócrita de forma alguma ocultava o sentimento hostil que nutriam um pelo outro. A erudição de ambos era, agora, única fronteira a impedir que a contenda ingressasse o plano da agressão física. Por essa mesma razão o litígio veio a instaurar-se no plano puramente psíquico. E o primeiro golpe fora desferido:

–Contratei um advogado imbatível. Seria melhor você desistir da ação agora mesmo e evitar o constrangimento da derrota. – Disse o psicólogo que havia chegado antes ao local da audiência.

–Duvido que o seu advogado seja melhor que o meu. Ele é portador de Transtorno Obsessivo Compulsivo e de uma série de outras enfermidades que o tornam uma máquina de advocacia. Nunca imprime uma petição que não esteja realmente perfeita. Conta até o número de linhas de cada página para alcançar a simetria ideal do texto.

–Pois o meu advogado é psicótico-narcisista. Não aceitará outro resultado que não a vitória. Levará esta ação para o lado pessoal e, certamente, não vai se contentar em vencê-la. Vai tentar destruir a sua carreira e a de seu advogado.

–O meu advogado possui Q.I. 187 e um quadro avançado de esquizofrenia paranoide e mania de perseguição. Não vai dormir até rebater com a mais absoluta veemência todos os pontos da tese defensiva do seu advogado!

–Já o meu advogado teve uma infância infeliz e encontrou nos livros o substituto ideal para os amiguinhos que não tinha. Isso o tornou incrivelmente erudito!

–Ah, mas o meu advogado era ignorado pelo pai e pela mãe o que tornou carente de atenção e de afeto. Por esta razão ele se esforça muito mais no trabalho afim de obter o reconhecimento que não obteve quando criança!

–Mandei meu advogado parar de tomar lítio há três semanas para que ele viesse a essa audiência absolutamente furioso!

–E eu disse que para o meu que se ele perdesse essa causa, eu não seria mais seu amigo!

–E eu...

Nesse momento, os dois homens percebem que uma multidão acompanhava a discussão, inclusive seus defensores.

Diante do entrevero que se formou a audiência foi cancelada. A próxima ocasião em que ambos os psicólogos se encontraram também foi uma audiência: a da ação de danos morais que os causídicos moveram contra eles por revelarem suas intimidades que deveriam estar sob sigilo profissional. Então, o terapeuta que outrora movera a ação contra o colega aproxima-se do mesmo e indaga:

–E agora? O que faremos?

–Ora, não se preocupe. Os juízes nunca fixam indenizações em mais do que alguns salários mínimos e honorários são sempre arbitrados em valores irrisórios.

E o outro, perplexo, responde:

–Isso, sim, é loucura!!!
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sábado, 18 de julho de 2009

NEGOCIANDO HONORÁRIOS

O casal estava cansado de tolerar algumas questões flagrantemente abusivas a que vinha sendo submetido. Marido e mulher, então, decidem que é chegada a hora de contratar um advogado e solucionar a controvérsia de uma vez por todas. O problema seria a questão dos honorários. Eles eram pobres, mas não eram bobos. Conheciam a fama dos advogados e não contratariam ninguém sem antes fazer uma criteriosa pesquisa de preço com, no mínimo, três amostras:

Amostra 1: O neófito.

A pesquisa iniciou-se com o filho de uma vizinha. O menino, que freqüentava a casa dos consulentes, desde que usava fraldas, recém havia se formado e atendia na mesa de jantar da casa dos pais. O neófito ouviu atentamente os relatos tenebrosos do casal e, ao ser indagado sobre os honorários, respondeu, gaguejando muito:

–Olha, a questão não é tão simples, não... Demandará alguns anos... Muitas idas ao foro... Isso sem contar as audiências e....

–Ok! – Interrompeu dona Sovínia, já angustiada. – Quanto isso vai nos custar?!

Pelas têmporas do menino toma curso a primeira gota de suor. Ele não quer trabalhar de graça, mas ao mesmo tempo não quer perder o cliente. Soma-se a isso o fato que se trava de amigos da família que acreditaram em sua competência. Não queria desapontá-los. Ponderou sobre todas estas variáveis por alguns segundos. Não concluiu nada, mas premido que estava pelo olhar dos potenciais clientes, chutou o primeiro valor que veio a sua cabeça:

–Duzentos reais fica muito ruim?

A mulher levantou-se da cadeira indignada:

–Duzentos reais?! Depois de todos os bolinhos e cachorrinhos quentes que servi pra você lá em casa, quando sua mãe lhe deixava lá a tarde inteira pra sair a bater perna na rua? Vamos embora daqui, Mísero. É só se formar em advocacia e a pessoa já fica besta, mesmo!

Amostra 2: O super-advogado bem-sucedido.

–Bom dia!

–Bom dia! Temos hora marcada com Dr. Writ Heróico.

–Pois não. São quatrocentos reais adiantados, só pela consulta.

O casal tenta não deixar transparecer o espanto. Depois de cruzarem olhares arregalados, Dona Sovínia, simulando uma inexistente tranqüilidade, volta-se para a balconista:

–Veja só. Devo estar com a cabeça na Lua. Esqueci meu talão de cheques no carro. Vamos lá buscar e já voltamos.

Amostra 3: O experiente e bem conceituado advogado.

–... então, o caso é esse, doutor. O que você acha?

–Moleza. Já cuidei de muitos casos assim. Inclusive, enquanto você falava eu já peguei uma petição de um caso igual, coloquei o nome de vocês, já imprimi e já assinei. Aqui está ela. Podem sair daqui e já distribuir no foro. A propósito, são vinte mil reais.

–Vinte mil reais?! Mas você nem teve trabalho algum! – Exclama o Sr. Mísero.

–Ok. – E o causídico rasga, na petição, a parte que contém sua assinatura – Sem a minha assinatura é de graça.

Claro, que com essa atitude o profissional esperava que o casal se convencesse de sua competência e de sua auto-confiança e, assim, o contratasse. Não foi o que aconteceu. A mulher rapidamente pegou a petição, agradeceu e saiu.

De volta à amostra nº 1:

–Então, foi isso que aconteceu e aqui está a petição daquele velho e experiente advogado.

–Que bom que vocês decidiram me contratar. Bem, então, são duzentos reais.

–Duzentos reais? Mas você só vai ter o trabalho de assinar!!!

O jovem não conseguia acreditar em toda aquela avareza. Cansado de discutir e traumatizado pelo último encontro, resolveu ceder.

–Cem reais, então.

A mulher, um pouco menos agitada, conforma-se:

–Ok. Mas em quantas vezes?
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terça-feira, 23 de junho de 2009

DR. PLAGGIO E A CLÍNICA DE ADVOCACIA


O telefone não chega a tocar pela segunda vez e já é atendido:

– Clínica de Advocacia Dr. Plaggio, bom dia!

–Clínica de Advocacia?! Como assim?! Liguei por causa do seu anúncio no jornal, mas acho que foi publicado errado. Vocês escreveram “’causas’ pré-fabricadas”, mas acho que vocês quiseram dizer “casas pré-fabricadas”, não é?

–Não, senhor. O anúncio está correto. Aqui nós só trabalhamos com causas judiciais pré-fabricadas.

–Olhe, eu advogo há 30 anos e nunca ouvi falar em Clínica de Advocacia e muito menos em “causas pré-fabricadas”! Eu exijo falar com o responsável!

A atendente, então, transfere a ligação para o gabinete do dono da clínica:

–Alô, aqui é Dr. Armando Plaggio, seu criado. – A voz era máscula, ainda que suavizada por um chique sotaque cosmopolita.

–Ah, é você o assassino do nosso Código de Ética? Que história é essa de Clínica de Advocacia?!

O Interlocutor toma fôlego para não se deixar cair na provocação que lhe fizera o outro.

–Antes de qualquer coisa, muito bom dia e obrigado por preferir a Clínica de Advocacia Dr. Plaggio. – O tom era jovial. – Aqui só trabalhamos com causas judiciais em que outros advogados obtiveram estrondoso sucesso e que nunca falham. Ou seja, nossas teses são produtos prontos. O cliente é que se enquadra, ou não, nas causas que oferecemos e não o contrário, como nos escritórios de advocacia convencionais.

Ao ser indagado sobre como funcionava o seu sistema vencedor, Dr. Plaggio, explicou que seus clientes tinham acesso ao “cardápio” de ações que lhes era disponibilizado no próprio estabelecimento ou via site na Internet. Lá constavam as causas como: Revisão de Pensão, Lei Britto, Sistema Financeiro de Habitação-SFH, Planos econômicos, dentre outras

A cada novo produto descoberto entrava em cena uma agressiva campanha publicitária.

–Quando surge uma tese vencedora, até nossos estagiários saem pelas ruas como homens-placa! – Disse Plaggio

–Mas isso não é advocacia. Isso é ato ilícito!

–Ilícito?! Minha clínica é uma clínica como qualquer outra! Ora, todos que implantam cabelos, aplicam botox, receitam dietas estão usando técnicas inventadas por outras pessoas e ninguém reclama! Não posso perder tempo criando teses. Preciso ganhar dinheiro. Ou você acha que minha Ferrari é tão moderna que não precisa de gasolina?

–É, você deve estar certo. – O velho advogado agora culpava seu zelo profissional por sua falta de sucesso financeiro. – E eu que só queria uma casinha pré-fabricada.

–Boa sorte com sua casinha, amigo. – Disse Dr. Plaggio, em sincera solidariedade. – A propósito, nessa compra você pretende usar o SFH? Porque se for, não deixe de passar na clínica. Temos um produto prontinho especialmente pra você... Bem, talvez não especialmente, mas... Bem, dê uma passada lá!
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terça-feira, 26 de maio de 2009

JUSTIÇA SELF-SERVICE


O ano é 2209 D.C. e uma conversa entre avô e neto tem início a partir da seguinte interpelação:

–Vovô, por que o mundo está acabando? – A calma da pergunta revela a inocência da alma infante. Em mesmo tom veio a resposta:

–Porque não existem mais advogados, meu anjo.

–Advogados? Mas o que é isso? O que faz um advogado?

O velho responde, então, que advogados eram homens e mulheres elegantes que se expressavam sempre de maneira muito culta e que, muitos anos atrás, lutavam pela justiça defendendo as pessoas e a sociedade.

–Eles defendiam as pessoas? Mas eles eram super-heróis?

–Sim. Mas eles não eram vistos assim. Seus próprios clientes muitas vezes não pagavam os seus honorários e ainda faziam piadas, dizendo que as cobras não picavam advogados por ética profissional.

–E como foi que eles desapareceram, Vovô?

–Ah, foi tudo parte de um plano secreto e genial, pois todo super-herói tem que enfrentar um super-vilão, não é? No caso, para derrotar os advogados esse super-vilão se valeu da “União” de três poderes. Por isso chamamos esse super-vilão de “União”.

Segundo o velho, através do primeiro poder, a União permitiu a criação de infinitos cursos de Direito no País inteiro, formando dezenas de milhares de profissionais a cada semestre, o que acabou com a qualidade do ensino e entupiu o mercado de bacharéis.

Com o segundo poder, a União criou leis que permitiam que as pessoas movessem processos judiciais sem a presença de um advogado, favorecendo a defesa de poderosos grupos econômicos e do Estado contra ao cidadão leigo e ignorante. Por estarem acostumadas a ouvir piadas sobre como os advogados extorquiam seus clientes, as pessoas aplaudiram a iniciativa.

O terceiro poder foi mais cruel. Eles fixavam honorários irrisórios para os advogados, mesmo quando a lei estabelecia limite mínimo! Isso sem falar na compensação de honorários, mas você é muito novo para ouvir certas barbaridades.

Mas o terceiro poder não durou muito tempo. Logo depois da criação do processo eletrônico, os computadores se tornaram tão poderosos que aprenderam a julgar os processos sozinhos. Foi o que se denominou de Justiça “self-service”. Das decisões não cabiam recursos, já que um computador sempre confirmava a decisão do outro, pois todos obedeciam à mesma lógica.

O primeiro poder, então, absorveu o segundo, com a criação das Medidas Definitivas, novo nome dado às Medidas Provisórias. Só quem poderia fazer alguma coisa eram os advogados, mas já era tarde demais. Estes estavam muito ocupados tentando sobreviver dirigindo táxis e vendendo cosméticos. Sem advogados, a única forma de restaurar a democracia é através das armas.

–E é por isso que o mundo está acabando, meu netinho. Mas agora chega de assuntos tristes. Eu já contei por que as cobras não picam os advogados?


Obs.: Dessa vez fiz um esboço para o chargista...

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Entrevista ao programa Via Legal

Prezados Leitores,

Já há algum tempo, fomos procurados por uma equipe do programa Via Legal. Eles estavam fazendo uma reportagem sobre o "Juridiquês" e um prestigiado Juiz Federal fez expressa recomendação de nosso conto "Doutor Brother" que pode ser acessado aqui no blog, através do link (http://contosforenses.blogspot.com/2008/11/dr-brother.html). Vide charge, abaixo:


A equipe de TV veio até o escritório para nos entrevistar.

Foi uma grande honra pra nós, e o resultado está no vídeo abaixo. A entrevista circulou no Canal Justiça, TVE e Rede Cultura. Claro que nossa participação não é longa, mas fiquei surpreso com o fato de que este hobby nos proporcionou mais destaque na mídia do que nossa séria e comprometida atuação profissional.

Além disso, ficou claro que nosso trabalho possui um público muito qualificado, mas disso nunca tive dúvidas. Falo de você, leitor a quem agradeço pela companhia.

Como diria Dr. Brother: "-Era isso!"
Segue o link de acesso à reportagem em vídeo:

domingo, 26 de abril de 2009

A METAMORFOSE DE DOUTOR KAFKA


Numa certa manhã, o famoso advogado, Dr. Kafka, ao verificar o correio, percebe que havia sido multado por não usar o cinto de segurança. Aposentado já há algum tempo, resolveu telefonar para um grande amigo seu que ainda militava, Dr. Ladino Tramposo, em busca de orientações:

–Kaká – disse Tramposo –, deixa isso comigo. Eu consigo um comprovante de que, na hora da multa, você estava em algum estacionamento ou em outro município. É moleza.

–Nada disso. Sem provas falsas. Eu sou cidadão honesto: realmente estive naquele local, àquela hora, só que estava de cinto, como sempre. Deve haver algum procedimento idôneo para ocasiões em que falham os agentes de trânsito, não?

–Existe, sim: ir no banco e pagar a multa.

O velho não confiou no parecer do amigo e foi ter com a autoridade de trânsito, pessoalmente. Ao ver ratificadas as informações prestadas por Tramposo, Dr. Kafka ficou possesso:

–Mas, se me lembro bem, a constituição me dá direito à mais ampla defesa, mesmo em processo administrativo: art. 5º, inciso LV!

–Mas nós estamos lhe garantindo a ampla defesa. Ou o senhor não recebeu uma notificação para apresentar defesa prévia? Agora, como o senhor vai provar que estava usando cinto é problema seu. Ah, e se não vier tal prova, nem perca tempo apresentando defesa, nem buscando o Judiciário.

–Mas isso é totalitarismo! É uma afronta ao Estado Democrático de Direito!

–Olha, perdi a paciência! – Exclamou a autoridade de cenho franzido. – É melhor o senhor ir saindo. E só pra ver quem é que manda, vai levar essa multa aqui por dirigir com braço pra fora, art. 252, do Código de Trânsito.

–Ultraje! O senhor não tem o poder e nem a coragem pra isso! – Contestou o velho.

–A não posso? Pois o senhor acabou de perder sua carteira por um ano, por dirigir embriagado: art. 165, CTB!

–Ah, e que prova o senhor tem de que ingeri álcool?

–Mas eu não preciso fazer prova nenhuma. O senhor é que tem que provar que não se recusou a fazer o teste do bafômetro.

E assim foi que, sem nenhuma culpa, Dr. Kafka perdeu a carteira por um ano e teve que fazer reciclagem. Sim, ele foi notificado para apresentar defesa de todas as autuações, mas não conseguiu provar o que alegava. Quase um ano após estes fatos, ele caminhava pela rua quando encontrou aquela mesma autoridade que o destratara. Achando que não tinha mais o que perder, decidiu desafiar o homem, uma vez mais:

–Como o senhor vai me multar agora que não dirijo mais?

Duas semanas depois, Dr. Kafka recebeu uma nova notificação de infração de trânsito, com base no art. 254, V, do CTB, por caminhar fora da faixa de segurança. Aparentando haver passado por uma “metamorfose”, o até então cidadão exemplar, sem um segundo de hesitação, pega o telefone e disca:

–Alô! Tramposo? Quanto você cobra a consulta, mesmo?
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http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?id=14641

quinta-feira, 26 de março de 2009

A DOUTRINA DE "CANUTILHO"


O Jovem advogado se aproxima da tribuna para proferir sua primeira sustentação oral dirigida a um tribunal. Mãos trêmulas denunciam a ansiedade que só não é maior que a honra de estar diante de algumas das mais importantes mentes da região, no que se refere à ciência do direito. Ora, por nenhum outro motivo é que tem seu discurso passado e repassado na memória. Precisão máxima de linguagem para que as mentes atentas e sagazes dos magistrados não encontrem qualquer falha em sua tese. Toga posta, papeis acomodados diante de si, mãos apoiadas sobre púlpito, coluna ereta, gel no cabelo, começa o discurso:

–Excelentíssimos Senhores Desembargadores...

O neófito hesita por um momento ao observar que a Desembargadora Presidenta da Turma, que também é relatora do processo, acena para alguém que se encontra na platéia. Imediatamente, um vulto de uma senhora carregando um saco enorme foi visto cruzando a sala de sessões, vindo a ajoelhar-se diante da magistrada que, nesse momento, após um giro concêntrico de 180º com sua cadeira, se encontrava de costas para a tribuna. Inicia-se uma animada conversa trilateral entre a senhora do saco, a senhora presidenta e a Digna representante do Ministério Público que agora estava à esquerda da desembargadora, face à posição reversa assumida por esta última.

O jovem advogado, mantém a compostura e prossegue com sua bela oratória como se nada de anormal estivesse a acontecer. Do saco, saíam peças de vestuário dos mais diversos tipos que eram examinados atentamente por todas.

A única ocasião em que a eminente relatora voltou os olhos para a tribuna foi quando o causídico fez uma expressa referência aos ensinamentos do grande mestre Canotilho[1]. Logo após, voltando-se novamente para sacoleira indagou:

–Não tem nada com “canutilho”? Miçanga, strass, paetê? Adoro lantejoulas.

–Não, o babado agora é decote com jabô ou frufru de tuli – responde a vendedora indagando, em seguida: – E esse cardigan da Michelle Obama?

–Ah, muito comportado. Só se colocasse um fuxico, de repente um bolerinho. – Aduz a compradora.

O advogado olha para os dois outros desembargadores da Turma, ávido por atenção. O revisor estava com olhos fixos para o decote de sua secretária que vestia um salopete evasê e, inclinando-se à frente para organizar uma pilha de processos, revelava generosas porções de sua anatomia. Do outro lado da mesa, a atenção do vogal era toda dirigida ao mesmo local para onde o revisor diria a sua.

Sem que nenhum dos componentes da turma ouvisse seu arrazoado, o jovem advogado não se surpreendeu com a derrota por unanimidade que se seguira. Depois desse dia, ao ser indagado sobre como fora em sua primeira sustentação oral, sempre respondia:

–A relatora tinha uma visão muito particular de Canotilho. Os outros dois, simplesmente, “tinham outra visão...”


[1] José Joaquim Gomes Canotilho: famoso autor de Direito Constitucional.
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terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A CIGARRA E A FORMIGA: UMA RELEITURA

Já em horário avançado da noite, o renomado advogado adentra a casa. Esbaforido, com a gravata arriada, equilibrava em uma mão o paletó e a pasta que a esta altura pesava uma tonelada, na outra, manipulava desastradamente as chaves das diversas trancas da porta, mas cuidando para não despertar a mulher e o filho que dormiam. Seguindo pelo corredor, encontrou a porta do quarto do menino entreaberta e não resistiu à tentação de dar uma espiadela para contemplar o sono angelical da criança. Porém, ao contrário do que esperava, o que encontrou foi um par de olhos fixos nos seus. Não demorou para ser interpelado:

–Por que você nunca chega cedo, papai?

Os olhos do causídico se injetaram e este prontamente se desfez de toda a tralha que carregava, deitando-se ao lado do filho.

–Porque o papai é como a formiguinha! – Respondeu o genitor em parte agradecido pela oportunidade de conviver um pouco com o menino. – Você conhece a história da formiguinha e da cigarra?

–Hã-hã. – Fez o menino acenando que não com a cabeça.

–Pois bem, vou contar essa história, mas você tem que prometer que vai dormir enquanto eu conto, ok?

–Ok.

Segue um breve trecho da história contada àquela noite pelo jurista:

Era uma vez, uma cigarra que não queria saber de trabalhar. Passava o dia a cantar e a passear. Por outro lado, havia uma formiguinha que não parava de trabalhar um minuto sequer e excedia em muito as horas de expediente, sempre preocupada com o inverno que se aproximava. Seguidamente, as duas se cruzavam durante o dia. Certa manhã a formiguinha, que já estava exausta de tanto trabalhar, ousou indagar:

–Amiga cigarra, de onde você vem tão feliz e cantante a esta altura da manhã?

–Ah, querida formiga, você sabe como eu sou, não abro mão do pilates, pela manhã. Prefiro fazer o pilates antes de malhar...

–O quê? Você ainda vai malhar?! E o grande inverno que está pra chegar? Você precisa trabalhar para juntar o suficiente para enfrentar o inverno!

–Não, eu não me preocupo com o inverno, mas não tenho tempo pra conversar agora, estou atrasada para a malhação. Tchau, tchau!

Durante o horário de almoço as duas se encontraram novamente e sentaram-se juntas já que a conversa da manhã, restara inacabada. A formiguinha, intrigada com o estilo de vida da cigarra, tomou a iniciativa da conversa:

–Amiga, me desculpe a insistência, mas você já não deveria estar trabalhando?!

–Ora, eu estou trabalhando “darling”. É que eu chego no trabalho, bato o ponto e saio pra almoçar... Todo mundo que conheço faz isso, você não?

–Claro que não eu trabalho porque preciso. Tenho que juntar tudo o que conseguir para me sustentar durante o inverno!

–Você está muito estressada. O que você precisa é freqüentar as aulas de ioga que faço todas as noites...

–O quê?! Você ainda faz ioga durante a noite?! Olhe, eu estou avisando você, se você continuar passando os dias a cantar, desde já alerto, algum dia você vai dançar, ouviu bem? Vai dançar!

Nesse momento, o narrador da história pegou no sono. O garoto, por seu lado, não conseguia dormir preocupado com a imprevidência da cigarra. Acordou o pai com um cutucão e aos prantos indagou:

–Papai, pobrezinha da cigarra! Como ela fez pra enfrentar o inverno, ela dançou?

E o homem, ainda muito sonolento, sem sequer abrir os olhos, colocou-se em uma posição mais confortável e balbuciou:

–Ela dançou, sim. Aposentou-se com a integralidade dos vencimentos e foi fazer dança de salão. Mas não se preocupe com ela, filho... Preocupe-se é com a formiguinha...

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

AURÉLIO, O ESTAGIÁRIO PETIÇÃO

Ainda no primeiro semestre da faculdade de Direito, Aurélio dirigiu-se para o seu primeiro dia de estágio na grande banca de advocacia. Não sabia bem o que faria. Sabia apenas o que os seus colegas viviam dizendo: e"stágio bom é aquele em que você faz petição, fora isso, você será um mero burro de carga, levando pilhas processos de lá pra cá e de cá pra lá."

Chegando lá, Aurélio foi muito bem recebido por seus novos colegas que o encaminharam diretamente ao gabinete do seu chefe, sócio e principal advogado da firma. O garoto não se intimidou e foi logo dizendo que não tinha a pretensão de fazer as vezes de burro de carga e que desejava desde logo trabalhar com petição. O advogado, impressionado com ambição ostentada pelo neófito, o interpelou:

–Gosto do seu espírito, garoto, mas você já elaborou alguma petição?

Silêncio... Aurélio não sabia o que responder. Apenas agora se dava conta de que não fazia a mais vaga idéia do que se tratava uma petição! Percebendo este fato, e ciente de que o menino estava lá pra aprender, o chefe decidiu auxiliá-lo:

–Garoto, pegue já aquele dicionário e leia em voz alta o que significa a palavra petição! – Já havia um tom mais enérgico em sua voz.

Aurélio, acusava o golpe em sua soberba. Cabisbaixo, foi lentamente até a estante. Pegou o dicionário, e, encontrando o verbete, proclamou, com uma voz cheia de insegurança:

Petição: 1.Bras. S. Petiço corpulento. [1]

O doutor levantou-se da cadeira em um pulo e arrancou o dicionário das mãos do estagiário.

–O quê?! Deixe-me ver isso aqui. – Em seguida abriu-se em uma desrespeitosa gargalhada. – Era pra você ter lido este outro resultado aqui, olha: Petição: 1.Ato de pedir. 2.V. rogo. 3.Requerimento.[2]

Após ver o abatimento do estagiário, mais uma vez o manda-chuva percebeu sua posição de mestre e tutor daquele jovem e decidiu-se por oferecer a ele um grande desafio:

–Bem, não se desanime. Ninguém nasce sabendo. Vou dar a você uma petição pra fazer. Começaremos em grande estilo: Peça ovo!

–Peça o quê?! – Indagou o aprendiz sem nada entender.

–Peça ovo!

–Ok, doutor, mas pra quem eu peço?

–Não guri. Não é pra você pedir ovo! É pra você elaborar uma peça processual, uma peça ovo, ou seja, uma petição inicial, uma peça inaugural, a famosa peça vestibular! – Exclamou impaciente.

–Me desculpe, doutor, mas estou farto de vestibulares, acabei de passar em um e ão foi fácil. – Colocou ingenuamente o estudante.

O chefe, agora furioso, continha-se em sua cadeira, apontou em direção a uma enorme pilha de processos.

–Aurélio, pegue esses processos e leve-os já pro fórum!

–Mas... e se me perguntarem se eu trabalho com petição, o que eu digo?

–Diga que petição é justamente o que você é. Se duvidarem, mostre a eles no dicionário!


[1] Novo Dicionário Aurélio 3ª Ed.
[2] Idem.


http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?id=13941