quarta-feira, 9 de abril de 2008

A HERMENÊUTICA E O GÊNIO DA LÂMPADA

O jovem Bossinha, como era carinhosamente apelidado por seus coleguinhas, aos onze anos de idade, cursando a quinta série do ensino fundamental, já era o líder de sua turma de amigos. Era um menino esperto, rápido, desenvolveu-se antes dos demais. Ainda que detestasse os estudos, era dotado de uma perspicácia ímpar e não tinha dificuldade alguma em se posicionar, qualquer que fosse a discussão que se colocasse. Por esta mesma razão, era muito temido pelos professores, pois, uma vez exposto o seu posicionamento, não havia Abraham Lincoln que o convencesse do contrário. Não tinha medo, portanto, de questionar os mais consolidados e pacíficos conhecimentos da sociedade, o que fazia, frise-se, diariamente, frustrando até os mestres mais experientes que simplesmente não conseguiam cumprir com o conteúdo programático.

Bossinha adorava essa sua fama, pois em todas as rodas de conversa, fosse durante o recreio, festas de aniversário, pracinhas, ou quaisquer outras ocasiões sociais, sua opinião era sempre a mais aguardada, e, portanto, invariavelmente, os holofotes acabavam se voltando para ele. Certa feita, o assunto era “Lâmpada Mágica”. As crianças discutiam o que cada uma pediria se, ao topar com a tal lâmpada, saísse de lá um gênio disposto a conceder-lhe três pedidos:

–Eu pediria uma bicicleta da Barbie, um par de patins e um pônei! – Disse, da forma mais doce possível, uma bela menininha, dotada de meigos cachinhos dourados.

Faltava ainda a opinião de Bossinha e foi para ele que todos os rostos se dirigiram àquele momento. Fazendo o possível para conter um riso mais que incontinente, esboçando um olhar de superioridade, como houvesse acabado de sagrar-se vencedor do quesito em debate, elevou uma das sobrancelhas e, com uma impostação de voz semelhante à de um galã de rádio-novela, encerrou a questão:

–Eu pediria, desde logo, infinitos pedidos e teria o gênio para sempre como meu escravo! – Falou e mirou o olhar de cada um da roda buscando e obtendo a almejada aprovação do grupo.

Os meninos que ali estavam se entreolharam frustrados por não serem os autores da brilhante colocação. As meninas, por sua vez, se entreolharam suspirando de amores, enfeitiçadas que estavam pela personalidade ousada e indomável do anti-herói.

Quinze anos se passaram e Bossinha transformara-se em um jovem e promissor advogado. A velha alcunha já não lhe servia mais e agora era chamado pelo nome, precedido, é claro, pela distinção preferida pelos causídicos: Doutor Bossalino P. Dante. E foi por pura casualidade que veio Dr. Bossalino, ao inventariar os despojos de uma massa falida, na qualidade de síndico, a deparar-se com uma lâmpada a óleo visivelmente antiga. Riu-se consigo mesmo relembrando as repetidas situações de sua infância em que brincara de “Gênio da Lâmpada”, sempre constrangendo o eventual gênio a conceder-lhe infinitos pedidos. Nunca, por outro lado, havia tocado em um objeto como aquele, e não perdeu a oportunidade. Foi precavido ao olhar em volta, antes de tomar a lâmpada em suas mãos. Examinou-a de todos os ângulos, admirando a beleza dos desenhos abstratos entalhados em suas laterais, assim como dos detalhes que ornavam a alça.

A poeira, que se acumulava nos sulcos formados pelos ornamentos, depreciava em muito a beleza do objeto, mas se podia ter idéia de que se tratava de antigüidade valiosíssima e nobre. Após alguns segundos de ponderação entre o moral e o libertino, sucumbiu o primeiro e a lâmpada foi sorrateiramente “escorregada” para dentro da pasta do advogado, que deixou, então, as instalações da massa falida indo diretamente para seu apartamento, onde residia sozinho. Lá chegando, deixou a pasta de lado e foi logo para a pia da cozinha proceder na limpeza do objeto.

Ao observar que a sujeira era espessa, pegou uma esponja e esfregou com veemência. Foi quando uma fumaça rósea passou a sair de dentro do objeto como se em seu interior houvesse uma violenta reação química. O advogado deixou a lâmpada cair de sua mão dentro da pia e afastou-se sem tirar os olhos da fumaceira. Foi quando o impossível aconteceu: a fumaça se materializou em um gênio que, antes de mais nada, desligou a torneira que havia sido deixada aberta por Bossalino, em sua fuga frenética. Em seguida, olhando em volta à procura de seu amo, fixou os olhos nos de Bossalino e, esboçando um caloroso sorriso, deu início aos procedimentos de praxe:

–O senhor me acordou de um sono secular ao que serei eternamente grato. Em retribuição, atenderei a três de seus desejos, quaisquer que sejam, com apenas duas restrições: o livre arbítrio de ninguém poderá ser restringido, assim como vida alguma poderá ser retirada. – o Gênio gesticulava muito enquanto falava. Ao concluir, cruzou os braços e aguardou pela reação de seu amo.

Demorou bastante até que Bossalino compreendesse a situação. Balbuciou muito, desconfiou, questionou e interrogou o Gênio, até que finalmente aceitou a sua sorte, e preparou-se para disparar o primeiro pedido:

–Hum... então pode ser qualquer coisa, menos matar alguém, ou, por exemplo, compelir alguém a me amar, ou me obedecer, ou coisa parecida, não é?

–Sim, meu amo. – Respondeu o Gênio, estendendo as mãos e curvando-se em reverência.

–Bem, então eu gostaria de uma mansão na Ilha da Pintada, às margens do Guaíba...

Nem bem havia concluído a frase, e, num piscar de olhos, ambos já estavam dentro da nova e belíssima mansão do causídico.

–Excelente! – Exclamou o amo. – Agora que residirei tão longe do trabalho, precisarei de um belo meio de transporte. Que tal uma Ferrari F250?

–Bela escolha, meu amo. – Um simples aceno de cabeça e ambos se remeteram à garagem da mansão onde o automóvel desejado estava estacionado. – E agora, meu amo, qual será o seu último pedido?

Bossalino reservou como último golpe o que desde criança imaginava desferir, em caso a vida lhe apresentasse essa oportunidade. Nunca imaginou que a mesma surgiria, mas o fato é que a ela surgiu. Era sua segurança e sua felicidade que estavam em jogo e, das mesmas, não abriria mão. Ficou um tanto quanto constrangido por, após receber tantas graças do Gênio, ter de escravizá-lo, mas colocando tudo na balança, concluiu que seria ignorância de sua parte deixar a oportunidade passar:

–Por fim, meu querido amigo Gênio... – Engoliu em seco, pois tinha consciência de que o complemento da frase não agradaria em nada o interlocutor. – Não é sem pedir vênia máxima que... Veja... – Olhava nos olhos o Gênio que, a partir de um dado momento, apagou o sorriso do rosto e, franzindo a testa, esperou pelo fim do imbróglio. – Indo direto ao assunto: o que desejo são mais infinitos pedidos. – Terminou rapidamente a frase e baixou os olhos. Não tinha coragem de encarar o outro.

O Gênio riu muito. Considerou ofensiva a pretensão do advogado e, a partir daquele momento, passou a não chamá-lo mais de “amo”. Esclareceu que a regra era demasiado clara e que se tratavam de apenas três pedidos, sendo que desses três, o beneficiário poderia escolher o que quisesse, ressalvadas as duas já mencionadas hipóteses. Por seu lado, Dr. Bossalino não se convencia. Entendia que a única restrição é o direito à vida e ao livre arbítrio. Assim sendo, não haveria vedação a que se pedisse mais infinitos pedidos. Por esta razão, o Gênio estaria obrigado por força de contrato verbal a atendê-lo, sob pena de configurar-se o inadimplemento contratual, autorizando, portanto, a adoção das medidas judiciais cabíveis.

Em séculos de existência, nunca o Gênio havia sido submetido a uma situação semelhante, e nem precisava, pois, com o seu poder, que transcendia a compreensão limitada da inteligência humana, poderia, em um simples estalar de dedos, desvencilhar-se daquela circunstância, inclusive eliminando completamente da existência o evento de haver o jurista encontrado a Lâmpada Mágica. Havia, porém, outra força movendo o ente superior a aceitar o desafio de relegar ao Judiciário a apreciação do litígio, qual seja, a honra. Deixaria ele que a justiça do homem decidisse sobre o caso. Estava certo de que o bom senso prevaleceria e que se sagraria vencedor, ao final. Porém, sabia que a mesma honra que o movia a aceitar o desafio, também o compeliria a acatar a decisão final da justiça, fosse qual fosse.

–Por favor, entre na Justiça. Estarei feliz em expor meus argumentos ao Judiciário e tenho plena confiança de que você sairá sucumbente. – Disse o Gênio, sem nunca perder o ar de tranqüilidade.

–Pois considere feito. Amanhã, no que abrir o fórum, estarei distribuindo a ação. Só preciso saber uma coisa antes! – Exclamou o causídico de dedo em riste.

–E o que seria?

–Que endereço ponho para citação?

Pois bem, o fato é que o advogado cumpriu com o prometido e deu-se a angularização processual. É claro que não seria possível, aqui, esmiuçar os argumentos de ambas as partes, eis que autor e réu apresentaram largas fundamentações. Em pouco tempo, processo já consistia de pilhas e mais pilhas de volumes. O advogado defendia a causa de sua vida. O Gênio, por sua vez, defendia sua honra, o que fez com admirável habilidade, diga-se de passagem. Com ambos esmerando-se no patrocínio de seus interesses, e pela causa haver se tornado célebre, atraindo a atenção de muitos magistrados e servidores, não demorou para que se desse o desfecho do litígio, mesmo porque, pelo fato de a questão se tratar de mera interpretação de cláusulas de contrato verbal, não reuniam-se, na espécie, os requisitos que autorizavam seu seguimento para os Tribunais Superiores, em Brasília, DF.

No recurso de apelação apreciado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a sentença fora mantida na íntegra, por seus próprios jurídicos termos. E realmente, a sentença prolatada pelo juiz de primeira instância fora brilhante. Aparentemente, a melhor forma de explicar os critérios de convencimento da magistrada é acostando alguns dos trechos mais relevantes da decisão, que é o que se faz, a seguir:

(...)

Não se há que olvidar o fato de que, em sendo procedente a presente demanda, na forma como apresentada pelo autor, expor-se-ia o réu à iminente condição de eterno escravo daquele, o que é hipótese vedada não somente pela legislação trabalhista, mas, especialmente, pela Constituição Federal que, em seu art. 1º, III, consagra, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito, a Dignidade da Pessoa Humana.

Claro que controversa é a condição do réu como Pessoa Humana, já que trata-se de ser atemporal e com elementos que o poderiam elevar ao status de divindade. Por outro lado, se humano não fosse, poderia constar como sujeito passivo de demanda processual? Tampouco me parece correto negar ao Sr. Gênio a condição de Sujeito de Direitos, reduzindo-o à condição de coisa semovente. Ademais, o próprio autor lhe reconheceu a condição de humano e cidadão civilmente capaz, ao erigir-lhe como sujeito passivo da presente, o que não foi contestado, impondo-se o reconhecimento do autor como legitimado a abrigar-se sob o manto do já mencionado inciso III do art. 1º da Lei Maior. Em outras palavras, em que pese o réu notoriamente não pertencer à raça humana, a ela se equipara, no que concerne à
prestação jurisdicional.

(...)

A questão, portanto, só pode ser resolvida a partir da Hermenêutica. Assiste razão ao autor, segundo o critério literal de interpretação, o fato de que em matéria de contratos particulares, o que não é proibido é permitido. Sob essa ótica, aceitável a pretensão de infinitos pedidos. Entretanto, afortunadamente, o Direito não se socorre de apenas uma modalidade interpretativa. Teleologicamente, ou seja, perquirindo-se a finalidade a que a cláusula se destina, observa-se que o contrato em exame é criado como uma forma de agradecimento ao ato de libertação de uma situação de cárcere. Seria, portanto, inadmissível que um ato proposto em agradecimento a uma libertação se transformasse, per se, em uma nova situação de aprisionamento. Soma-se a isso, o fato de a pretensão do autor afrontar o disposto no art. 113 do Código Civil Brasileiro, segundo o qual: Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé (...)

Pode-se socorrer também do Direito Comparado, citando-se como precedente o caso do Sr. Aladim, que é de conhecimento público e onde o contratante teve direito a apenas três pedidos.

(...)

ANTE O EXPOSTO, JULGO IMPROCEDENTE A AÇÃO, e condeno o autor ao ônus da litigância de má-fé, por usar o expediente processual para subjugar alguém à condição de escravo. Ressalvo, entretanto, que o efeito da presente sentença é apenas o de invalidar a pretensão de infinitos pedidos, não eximindo o réu de atender ao último pedido do autor, que, corolário lógico, não poderá ser de infinitos pedidos(...)

O efeito da decisão final foi devastador para Bossalino, que verteu lágrimas, ao dela tomar conhecimento. O Gênio, por seu lado, na condição de ser superior, comoveu-se com a cena que presenciou. Observou que Bossalino conservava um lado infantil e compreendeu que o sucumbente não passava de uma criança grande, dotada de uma irresistível inocência e de uma ambição própria dos espíritos juvenis. Por esta razão, e observando que ainda lhe devia um pedido, foi ao seu encontro e o convidou para tomar um refrigerante, em um bar nas proximidades do Tribunal, onde tiveram uma conversa reconciliadora. Após sorver a última gota de seu refresco, com um olhar humilde, Bossalino indagou:

­–Quer dizer que, pela honra, você seria capaz de se submeter à condição de meu escravo?

–Exatamente. Neste caso, sim, pois a honra é a principal qualidade exigida para a posição de “Gênio da Lâmpada”. – Asseverou o Gênio, com orgulho.

–Devo fazer meu último pedido, então? – Bossalino mantinha o olhar humilde.

–Por favor, meu amo. – O Gênio estava sorridente outra vez.


–Gostaria que minha ação fosse procedente.