quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O SABOTADOR


 
Doutor Rodato Basso era conhecido pelos amigos por viver sabotando a si mesmo. Esta característica já o acompanhava desde a infância, como quando, na iminência do primeiro beijo, decidiu sair no meio da festinha, para assistir ao seu desenho animado favorito. Na adolescência, quando participava das olimpíadas da escola, comia demais antes dos jogos, ou dormia de menos, ou ficava preocupado com o aquecimento global; enfim, qualquer motivo servia para que ele pudesse fracassar. E só depois, quando se lembrava do quanto desejava vencer, percebia a autossabotagem, e vocalizava:

–Ops!

Mas isso não o impediu de se tornar um grande advogado. De fato, Doutor Rodato apresentava uma notável erudição e um domínio ímpar da linguagem. Às vezes perdia algum prazo por não acreditar em agendas, ou botava a perder um processo por brigar com o juiz. Enfim, sempre que percebia que sua velha enfermidade voltava a atacar, era tarde demais, e seguia-se um:

–Ops!

Todavia, o causídico exteriorizava um vasto saber jurídico e, por ser muito bem articulado, foi procurado por um amigo acusado de homicídio, para elaboração da defesa perante o tribunal do júri. O cliente sabia da vocação autopunitiva do amigo, mas acreditava que a amizade e a seriedade da questão se sobreporiam esta pequena disfunção.

Por seu lado, Doutor Rodato tinha consciência da honra da contratação. Era mais do que um trabalho técnico, era a redenção de seus pecados, a demonstração de que suas qualidades superavam sua enfermidade, o reconhecimento público de suas virtudes. Por esta razão, antes de elaborar a defesa, escreveria um soneto celebrando a ocasião. "Um soneto para marcar época!" - dizia ele.

Mas escrever um soneto de tanta beleza demandava tempo e o trabalho se estendeu por vários dias. Ao concluir a obra, Rodato estava exultante, mas, voltando-se para a defesa do amigo, percebeu que a data do julgamento já havia passado. Buscando informações, descobriu que o réu já havia sido julgado e recolhido ao Presídio Central.

Odiando-se e amaldiçoando-se, Doutor Rodato sentia as chamas da vergonha consumindo-lhe a alma, subindo por sua garganta e vertendo em forma de lágrimas. Ainda abalado, o advogado abriu seu computador e percebeu que tinha nas mãos um dos melhores sonetos já escritos na língua portuguesa e que, por isso, talvez, a situação não tenha sido um fracasso completo.

Mas, de repente, Rodato foi tomado por um sentimento de revolta contra a humanidade que, desde sua infância, era tão impiedosa para com os seus sentimentos. Decidiu, então, punir a humanidade, privando-a de seu belo soneto. Assim que deletou permanentemente o arquivo, foi tomado por uma sensação de alívio que durou não mais do que quatro segundos, até que a compreensão do ocorrido o levasse rematar:–Ops!

http://www.espacovital.com.br/noticia-27564-sabotador