quarta-feira, 19 de março de 2008

LAVOISIER FORENSE

Pela manhã, do seu escritório, o Advogado telefona para o fórum. Nada de mais, na verdade. Apenas observou que uma petição sua solicitando o adiamento da audiência, por uma série de motivos legítimos que aqui não vêm ao caso, ainda não havia sido juntada ao processo. Por motivos legítimos entenda-se: se o juiz houvesse lido a petição, com certeza haveria concedido o adiamento. Pois bem, o causídico havia protocolado o pedido com vinte dias de antecedência. Antes, conversara com a oficial encarregada, doravante denominada Oficial 1, que se negou a receber a peça, pois, naquele foro, todas as peças deveriam ser protocoladas no protocolo central, que, neste caso, ficava a longínquos cinco andares de distância.

- Compreendo perfeitamente a urgência, doutor, mas não posso receber sua petição. Pode protocolar no protocolo central, no primeiro andar. Diga que é urgente e diga meu nome pra eles que eles trazem rapidinho aqui pra mim. – Disse ela com um tom acolhedor, não se pode mentir.

O advogado, então, calejado das lidas forenses, fez muito mais do que isso. Pegou papel amarelo fosforescente, escreveu em letras garrafais: “URGENTE!!! Entregar para a Oficial 1!!! Audiência marcada para o dia ‘X’”. Ainda assim, não ficou tranqüilo, tirou um extrato com a informação atualizada do processo, onde constava a data da audiência. Grifou com caneta marca-texto verde fosforescente. Grampeou tudo junto e entregou no protocolo indicado, fazendo todas as observações pertinentes.

Até aí, tudo bem. O problema começou, na verdade, dezenove dias depois. Pela Internet não havia sequer menção à petição protocolada. Como o horário de atendimento telefônico no Judiciário gaúcho é de apenas uma hora (das 17h30m às 18h30m) é muito difícil conseguir completar uma chamada especificamente nesse horário, em razão do congestionamento das linhas, em especial tratando-se de alguns foros regionais como é o caso deste, em questão. O Advogado já estava há alguns dias tentando sem sucesso tal ligação e não teve outra escolha que não a de discar fora desta breve e disputada janela de tempo. É então que retornamos ao princípio deste escrito, quando o Advogado tentava contato telefônico com o cartório, sabendo, gize-se, que o fazia fora do horário próprio.

- Foro Regional Tal.
- Bom dia! Como vai a senhora?
- Bem obrigado...

Silêncio. Passou-se, então, um lapso de tempo como que se o Advogado esperasse que a telefonista lhe perguntasse também como ia ele, ou ao menos que indagasse qual o ramal desejado, enfim, houve um quê de vago na resposta da telefonista.

- Por favor, me passe para a X Vara Cível. – Disse o advogado com um tom de voz radiante!
- O horário de atendimento telefônico é das 17h30m às 18h30m, senhor. – Respondeu, implacavelmente, a telefonista. – Ou então o senhor terá que vir pessoalmente, senhor.
- Eu sei, mas, senhora, perceba, eu já liguei centenas de vezes no horário próprio e nunca consegui sequer completar a chamada. Trata-se de um equívoco por parte do seu setor de protocolo, e uma petição que era urgente sequer foi juntada ao processo e temos apenas um dia para o juiz recebê-la e despachar cancelando, ou não, a audiência. De qualquer forma, tenho que saber antes, pois o cliente não mora em Porto Alegre e não quero que ele venha para uma audiência desnecessária, ou que acabe nem mesmo acontecendo, ou mesmo, que deixe ele de vir e, então, se prejudicar de alguma forma, caso a tal audiência não seja adiada.

E ele deu mais uma justificativa:

- Senhora, ponha-se no meu lugar. Se eu deixo de ligar agora e espero até às 17h30m, quem garante que vou conseguir ligação?! E se não consigo resolver isso hoje, amanhã já não vai mais dar, não é?
- Senhor, eu vou fazer o seguinte, vou ligar pra lá e dizer exatamente isso pra eles. Se eles deixarem, eu passo a ligação. Se não, não.
- Ok. – Disse o causídico, certo de que o cartório iria concordar em abrir uma exceção no horário do atendimento telefônico, já que a ligação se dava pela única razão de que o próprio órgão público havia sido desidioso no trato com a sua petição urgente... Minutos e mais minutos se passaram.
- Senhor? – A voz feminina no telefone chamava.
- Sim? – Respondeu ele.
- Conversei bastante com eles, mas eles concluíram que o senhor deve ligar no horário de atendimento telefônico, ou se dirigir pessoalmente ao cartório. – Ela já falou com um tom de quem espera que, na próxima linha de diálogo, se instaure o litígio.
- Mas não é possível... – O Advogado cuidou para a que a expressão não saísse em tom de exclamação, pois sabia que na rotina forense, como em Lavoisier, “nada se perde, nada se ganha, tudo se negocia”. – Mas você falou tanto tempo com eles! Se fosse eu que tivesse falado, teria resolvido tudo em muito menos tempo, e ainda teria evitado duas idas ao fórum pra mim, uma audiência desnecessária para o Juiz e um atendimento no balcão a menos para quem quer que seja que você tenha conversado agora por telefone, compreende?
- Lamento, senhor. Bom d....
- Espera, espera, espera!!! Ok, moça. Entendi. – Disse ele, a tempo de evitar que ela desligasse o telefone. – Escute, enquanto eu esperava você falar com o cartório, meu sócio, que está aqui ao meu lado, me lembrou que temos que dar, também, uma palavrinha com o pessoal da contadoria aí do fórum...
- Lamento, senhor, mas a contadoria obedece ao mesmo horário para atendimento telefônico.

Era ódio o que transitava agora pelas artérias do furioso causídico. Todo o seu sangue via-se em seus olhos. Talvez a telefonista tenha até mesmo podido ouvir o ranger de dentes do doutor pelo telefone, sorte dela que não podia ver a expressão que se esculpiu instantaneamente ao rosto daquele. Neste momento, o advogado repassava em sua mente a frase que era o principal jargão que ensinava para seus assessores e estagiários - “na rotina forense, vale a Lei de Lavoisier: nada se perde, nada se ganha, tudo se negocia”. - Imbuído desse espírito, mas dando a incorreta interpretação à paródia que era de sua autoria, prosseguiu no diálogo com a telefonista:

- Ah, então você não pode passar a ligação pra ninguém fora do horário de atendimento telefônico, não é?
- Exato, senhor.
- Então me diga uma coisa, - a partir daí, nada de útil poderia resultar dessa negociação e o doutor sabia muito bem disso, mas prosseguiu mesmo assim – pra que o Judiciário paga uma telefonista que fica atendendo às ligações externas, fora do horário de atendimento externo, se essa, de qualquer forma, não vai poder transferir a ligação pra lugar nenhum!!!
- Acredito que para informar o horário de atendimento telefônico externo. Para que as pessoas que ligam fora do horário, voltem a ligar, desta vez, dentro do horário. Deseja mais alguma coisa, senhor?

Touché! Aqui a telefonista foi realmente habilidosa, pois foi capaz evitar o enfrentamento direto para com o advogado. Se ela houvesse se irritado e batido o telefone na cara daquele, isso não o teria irritado tanto como essa pergunta final padrão, decorada, mecânica, flagrantemente sarcástica... Foi a gota d’água, e o doutor finalmente respondeu a altura:

- Sim, desejo!!! (...) - Nada veio à mente do Advogado, àquele momento, que pudesse completar essa frase com o grau de ofensividade que a servidora merecia. Proferiu alguns chiados com a garganta, como se esta não fosse larga o suficiente para passarem todos os xingamentos que lutavam para libertar-se!!! – Uhahuehiiiii...

BLEIN!!! Foi o fim da chamada, assim como o fim do aparelho telefônico utilizado pelo doutor.

Naquele dia o Advogado descobriu que havia parodiado equivocadamente a lei do mestre Lavoisier, pois no Judiciário, como na natureza, sim, tudo se transforma, bastava ver o seu semblante ao princípio e ao fim daquela ligação. Porém tudo se perde como o cliente, a causa, ou o próprio telefone, mas alguma coisa, por pior que seja, sempre se ganha: experiência. Ou, pelo menos, é o que se espera...







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