domingo, 1 de maio de 2011

RECEBENDO A QUITAÇÃO


O advogado dirige-se ao cartório de uma vara cível para retirar um alvará. Ao deparar-se com o documento, entretanto, observa que só o seu cliente estava autorizado a levantar os valores.

A prudência diante da grave inadimplência com que a classe tem que conviver e a relevância daquele numerário para sua subsistência lhe recomendavam que insistisse para que o alvará fosse expedido em seu nome. Peticionou, então, solicitando a expedição de novo alvará.

Sobreveio decisão negando o pedido, uma vez que, à procuração, não constavam poderes específicos para “receber e dar quitação”, na forma do art. 623 da Consolidação Normativa Judicial.

Intimado da decisão, o advogado dirigiu-se, imediatamente, ao cartório, pois suas procurações sempre traziam tais poderes. Lá chegando, chamou escrivão para esclarecer o mal entendido:

–Senhor Escrivão, houve um engano na expedição do meu alvará. O juiz disse que, na procuração, não havia poderes para receber e dar quitação. Mas cá estão os poderes, veja. Leia comigo: “poderes específicos para dar e receber quitação”.

–Mas e onde estão os poderes para “receber e dar quitação”? – Indaga o escrivão.

–O quê? Eu acabei de mostrar-lhe! Está aqui: “dar e receber quitação”.

–Mas “dar e receber” não é a mesma coisa que “receber e dar.” O doutor – disse o escrivão, referindo-se ao juiz – nunca vai lhe autorizar a sacar o dinheiro.

–Mas isso é um absurdo! “Dar e receber” não é a mesma coisa que “receber e dar”? Isso é inaceitável!

–Doutor, lamento, mas a lei diz “receber e dar” e não “dar e receber”. É a lei, doutor.

-Santo Cristo! – Blasfema o advogado, perplexo. Não perdeu mais tempo tentando explicar a questão semanticamente, ou as formas de interpretação da norma jurídica. Simplesmente recorreu e, como não poderia deixar de ser, obteve a reversão da decisão.

Mas depois deste episódio o advogado já não era mais o mesmo. Estava decepcionado e descrente no Judiciário. O que mais o entristeceu foi que, ao realizar a pesquisa para elaborar o recurso, observou que existe, de fato, discussão jurisprudencial e doutrinária sobre as expressões “receber e dar” e “dar e receber” quitação. Embora prevaleça o entendimento de que ambas conferem poder ao advogado para levantar alvará, questionava-se se a origem desta discussão residiria no puro interesse científico, o que seria salutar, ou em uma sádica força nem tão invisível que impele os Órgãos do Judiciário a, de alguma forma, obstar o acesso do advogado aos seus honorários.

Fato é que nosso personagem retornou ao cartório para exigir que o alvará fosse refeito. Reconhecido pelo pessoal do cartório, foi novamente interpelado:

–É doutor. “Receber e dar”, “dar e receber”... Coisas do português.

E responde o advogado, com ironia:

–Coisa de português, sem dúvida...


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