sexta-feira, 21 de maio de 2010

CARÊNCIA DE AÇÃO


Quando Dr. Juílson viu o sol se pôr, da janela de seu confortável apartamento, na capital, não poderia imaginar que aquela não seria uma noite como as demais. Como era sua rotina de final de tarde, o nobre Juiz de Direito encontrava-se na cozinha preparando o chimarrão que sempre o acompanhava em suas leituras vespertinas, quando o som do abrir e fechar da porta da frente o fez perceber que sua esposa, a renomada advogada Dra. Themis, chegava do trabalho. Tal fato não fez com que Dr. Juílson movesse em um milímetro sua rotina, continuando a preparar o seu mate, como de costume. Talvez este tenha sido o seu erro fatal.

Sem pressa, o magistrado concluiu o preparo da bebida e, um pouco desajeitado, tentava equilibrar em ambas as mãos, a cuia, a térmica, um pacotinho de biscoitos, e uma pasta de documentos que conseguiu segurar embaixo de um dos braços. Com toda esta tralha, dirigir-se-ia para seu gabinete, mas ao dar meia volta deparou-se com sua esposa que já o observava a sabe-se lá quantos minutos. O susto foi tal que cuia, erva e documentos foram ao chão, transformando-se em uma mistura desastrosa. O juiz franziu o cenho e estava pronto para praguejar, quando observou que o cenho de Dra. Themis encontrava-se ainda mais franzido que o seu e o desabafo que viria em seguida não derivava de uma situação repentina. Era o rompimento da barragem que continha um oceano de emoções reprimidas ao longo de uma vida. Mas por tratarem-se de dois juristas experimentados, não é estranho que o litígio que se instaurava obedecesse aos mais altos padrões de erudição processual e de civilidade:

– Juílson! Eu não agüento mais essa sua inércia. Eu estou carente, carente de ação, entende?

O magistrado foi pego de surpresa, mas, refeito do golpe, reage à altura.

– Carente de ação? Ora, mas não culpe só a minha inércia, você sabe muito bem que para haver ação é preciso provocar o Juízo, e você não me provoca, há anos. Já eu dificilmente inicio um processo sem que haja contestação.

– Sim, é isso que você queria, não é? Que o processo corresse à revelia. Mas não adianta, tem que haver o exame das preliminares, antes de entrar no mérito. E mais, com você o rito é quase sempre sumaríssimo, isso quando a lide não fica pendente... Daí você já sabe, né? A execução fica frustrada.

– Calma aí, agora você está apelando. Quantas vezes eu já disse que não quero acordar o apenso, no quarto ao lado. Já é muito difícil colocá-lo para dormir. Quanto ao rito sumaríssimo, é que eu prezo a economia processual e detesto a morosidade. Além disso, às vezes até uma cautelar pode ser satisfativa.

– Sim, mas pra isso é preciso que se usem alguns recursos especiais. Seus recursos são sempre desertos, por absoluta ausência de preparo.

– Ah, mas quando eu tento manejar o recurso extraordinário você sempre nega seguimento. Fala dos meus recursos, mas sempre impugna todas as minhas tentativas de inovação processual. Isso quando não embarga a execução.

Dr. Juílson, então, percebeu que contestar a esposa não era a maneira mais célere para solucionar o litígio. Além disso, existia um fundo de verdade nos argumento de Dra. Themis. Ele só se recusava a aceitar a culpa exclusiva pela crise do relacionamento. Por isso, resolveu complementar:

– Acho que o pedido procede, em parte, pois pelo que vejo existem culpas concorrentes. Já que ambos somos sucumbentes vamos nos dar por reciprocamente quitados e compor amigavelmente o litígio.

– Não posso. É tarde demais. Agora já existem terceiros interessados. E já houve a preclusão consumativa.

– Meu Deus! Mas de minha parte não havia sequer suspeição!

– Sim. Há muito que sua cognição não é exauriente. Aliás, nossa relação está extinta. Só vim pegar o apenso em carga e fazer remessa para a casa da minha mãe.

E ao ver a mulher bater a porta atrás de si, Dr. Juílson ficou tentando compreender tudo o que havia acontecido. Após deliberar por alguns minutos, chegou a uma triste conclusão:

– E eu é que vou ter que pagar as custas...
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