terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A CIGARRA E A FORMIGA: UMA RELEITURA

Já em horário avançado da noite, o renomado advogado adentra a casa. Esbaforido, com a gravata arriada, equilibrava em uma mão o paletó e a pasta que a esta altura pesava uma tonelada, na outra, manipulava desastradamente as chaves das diversas trancas da porta, mas cuidando para não despertar a mulher e o filho que dormiam. Seguindo pelo corredor, encontrou a porta do quarto do menino entreaberta e não resistiu à tentação de dar uma espiadela para contemplar o sono angelical da criança. Porém, ao contrário do que esperava, o que encontrou foi um par de olhos fixos nos seus. Não demorou para ser interpelado:

–Por que você nunca chega cedo, papai?

Os olhos do causídico se injetaram e este prontamente se desfez de toda a tralha que carregava, deitando-se ao lado do filho.

–Porque o papai é como a formiguinha! – Respondeu o genitor em parte agradecido pela oportunidade de conviver um pouco com o menino. – Você conhece a história da formiguinha e da cigarra?

–Hã-hã. – Fez o menino acenando que não com a cabeça.

–Pois bem, vou contar essa história, mas você tem que prometer que vai dormir enquanto eu conto, ok?

–Ok.

Segue um breve trecho da história contada àquela noite pelo jurista:

Era uma vez, uma cigarra que não queria saber de trabalhar. Passava o dia a cantar e a passear. Por outro lado, havia uma formiguinha que não parava de trabalhar um minuto sequer e excedia em muito as horas de expediente, sempre preocupada com o inverno que se aproximava. Seguidamente, as duas se cruzavam durante o dia. Certa manhã a formiguinha, que já estava exausta de tanto trabalhar, ousou indagar:

–Amiga cigarra, de onde você vem tão feliz e cantante a esta altura da manhã?

–Ah, querida formiga, você sabe como eu sou, não abro mão do pilates, pela manhã. Prefiro fazer o pilates antes de malhar...

–O quê? Você ainda vai malhar?! E o grande inverno que está pra chegar? Você precisa trabalhar para juntar o suficiente para enfrentar o inverno!

–Não, eu não me preocupo com o inverno, mas não tenho tempo pra conversar agora, estou atrasada para a malhação. Tchau, tchau!

Durante o horário de almoço as duas se encontraram novamente e sentaram-se juntas já que a conversa da manhã, restara inacabada. A formiguinha, intrigada com o estilo de vida da cigarra, tomou a iniciativa da conversa:

–Amiga, me desculpe a insistência, mas você já não deveria estar trabalhando?!

–Ora, eu estou trabalhando “darling”. É que eu chego no trabalho, bato o ponto e saio pra almoçar... Todo mundo que conheço faz isso, você não?

–Claro que não eu trabalho porque preciso. Tenho que juntar tudo o que conseguir para me sustentar durante o inverno!

–Você está muito estressada. O que você precisa é freqüentar as aulas de ioga que faço todas as noites...

–O quê?! Você ainda faz ioga durante a noite?! Olhe, eu estou avisando você, se você continuar passando os dias a cantar, desde já alerto, algum dia você vai dançar, ouviu bem? Vai dançar!

Nesse momento, o narrador da história pegou no sono. O garoto, por seu lado, não conseguia dormir preocupado com a imprevidência da cigarra. Acordou o pai com um cutucão e aos prantos indagou:

–Papai, pobrezinha da cigarra! Como ela fez pra enfrentar o inverno, ela dançou?

E o homem, ainda muito sonolento, sem sequer abrir os olhos, colocou-se em uma posição mais confortável e balbuciou:

–Ela dançou, sim. Aposentou-se com a integralidade dos vencimentos e foi fazer dança de salão. Mas não se preocupe com ela, filho... Preocupe-se é com a formiguinha...

3 comentários:

mena disse...

Rafael,

Parabéns pelos contos forenses que escreves.

Eles traduzem a realidade do cotidiano de maneira sábia, criativa e com bom humor.

Leio mais de uma vez, pois "faz a gente pensar"....

Abraços,

Mena.

Leti Uberti & Richard Saccheto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Leti Uberti & Richard Saccheto disse...

oi colega,
adorei os contos, tem que mandar pra ZH...
grande abraço...
Leti Uberti - colega da pós-puc CPC -